Lenin (1899)
A social-democracia internacional¹ atravessa atualmente um período de vacilação ideológica. Até agora as doutrinas de Marx e Engels eram consideradas como a base firme da teoria revolucionária; mas nos dias que correm podem-se ouvir, por toda parte, vozes sobre a insuficiência e caducidade dessas doutrinas. Aquele que se declara social-democrata e tem a intenção de publicar um jornal social-democrata deve determinar com exatidão sua posição frente à questão que não apaixona apenas, absolutamente, os social-democratas alemães.
Domingo Sangrento, 1905, tropas do Czar atiram contra manifestação pacífica. |
Nós nos baseamos integralmente na teoria de Marx: ela transformou pela primeira vez o socialismo, de utopia, em uma ciência, lançou as sólidas bases dessa ciência e traçou o caminho que havia de seguir, desenvolvendo-a e elaborando-a em todos os seus detalhes. A teoria de Marx descobriu a essência da economia capitalista contemporânea, explicando como a contratação do operário, a compra da força de trabalho encobre a escravização de milhões de despojados por um punhado de capitalistas, donos da terra, das fábricas, das minas, etc. Essa teoria demonstrou como todo o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo orienta-se para a substituição da pequena pela grande produção, criando as condições que tornam possível e indispensável a estruturação socialista da sociedade. Ela nos ensinou a ver, sob o manto dos costumes arraigados, das intrigas políticas, das leis sabichonas e doutrinas habilmente urdidas, a luta de classes, a luta que se desenvolve entre as classes possuidoras de todo gênero e as massas despojadas, o proletariado, que está à frente de todos os desempossados. A teoria de Marx estabeleceu a verdadeira tarefa de um partido socialista revolucionário: não arquitetar planos de reestruturação da sociedade nem ocupar-se da prédica aos capitalistas e seus acólitos da necessidade de melhorar a situação dos operários, nem tampouco tramar conjurações, mas sim organizar a luta de classe do proletariado e dirigir esta luta, que tem por objetivo final a conquista do poder político, pelo proletariado e a organização da sociedade socialista.
E agora perguntamos: que trouxeram de novo a essa teoria aqueles buliçosos “renovadores”, que tanto ruído fizeram em nossos dias, agrupando-se em torno do socialista alemão Bernstein? Absolutamente nada: não avançaram nem um passo a ciência que nos legaram, com a indicação de desenvolvê-la, Marx e Engels; não ensinaram ao proletariado nenhum novo método de luta; só fizeram recolher-se, catando fragmentos de teorias atrasadas e pregando ao proletariado, em vez da doutrina da luta, a das concessões aos inimigos mais encarniçados do proletariado, aos governos e partidos burgueses, que não se cansam de inventar novos métodos de perseguição contra os socialistas. Um dos fundadores e chefes da social-democracia russa, Plekhanov, tinha toda razão ao submeter a uma crítica implacável a última “crítica” de Bernstein, cujas concepções também renegam agora os representantes dos operários alemães (no Congresso de Hanôver).
Sabemos que estas palavras provocarão uma carrada de acusações que nos será lançada: gritarão que queremos converter o partido socialista numa seita de “ortodoxos”, que perseguem os “hereges” por sua apostasia do “dogma”, por toda opinião independente, etc.
Conhecemos todas essas frases cáusticas tão
em voga. Mas elas não contêm um pingo de verdade, um mínimo de bom-senso. Não
pode existir um forte partido socialista sem uma teoria revolucionária que
agrupe todos os socialistas, da qual eles extraiam todas as suas convicções e
apliquem em seus processos de luta e métodos de ação. Defender essa teoria, que
segundo sua mais profunda convicção é a verdadeira, contra os ataques
infundados e contra as tentativas de alterá-la não significa, de modo algum,
ser inimigo de toda crítica. Não consideramos, absolutamente, a teoria de Marx
como algo acabado e intocável; estamos convencidos, pelo contrário, de que esta
teoria não fez senão fixar as pedras angulares da ciência que os socialistas
devem impulsionar em todos os sentidos, sempre que não queiram ficar para trás
na vida. Acreditamos que para os socialistas russos é particularmente
necessário impulsionar independentemente a teoria de Marx, porque essa teoria
fornece apenas os princípios diretivos gerais, que se aplicam em particular na
Inglaterra, de modo diferente que na França; na França de modo diferente que na
Alemanha; na Alemanha de modo diferente que na Rússia. Pela mesma razão, com
muito prazer daremos guarida em nosso jornal aos artigos que tratem de questões
teóricas e convidamos todos os camaradas a tratar abertamente os pontos em
discussão.
Quais são, pois, as questões principais que
surgem ao aplicar à Rússia o programa comum para todos os social-democratas? Já
dissemos que a essência desse programa consiste na organização da luta de
classe do proletariado e na direção dessa luta, cujo objetivo final é a
conquista do poder político pelo proletariado e a estruturação da sociedade
socialista. A luta de classe do proletariado compõe-se da luta econômica
(contra capitalistas isolados ou contra grupos isolados de capitalistas pela
melhoria da situação dos operários) e da luta política (contra o governo, pela
ampliação dos direitos do povo, isto é, pela democracia, e pela ampliação do
poder político do proletariado). Alguns social-democratas russos (entre eles,
pelo visto, os que editam o jornal Rabotchaia Misl) consideram
incomparavelmente mais importante a luta econômica, chegando quase a afastar a
luta política para um futuro mais ou menos distante. Tal opinião é
profundamente errada. Todos os social-democratas estão de acordo em que se deve
organizar a luta econômica da classe operária, em que nesse terreno é preciso
levar a cabo uma agitação entre os operários, quer dizer, é preciso ajudá-los
em sua luta cotidiana contra os patrões, chamar sua atenção para todos os
aspectos e casos de opressão e explicar-lhes, assim, a necessidade de unir-se.
Mas esquecer a luta política por causa da luta econômica significaria renegar o
princípio fundamental da social-democracia do mundo inteiro, significaria
esquecer todos os ensinamentos proporcionados pela história do movimento
operário. Os partidários fervorosos da burguesia e do governo a serviço dela
tentaram, inclusive, mais de uma vez, organizar associações de operários, de
caráter puramente econômico, para, desse modo, desviá-los da “política” e do
socialismo. É muito possível que também o governo russo consiga empreender algo
nesse sentido, pois sempre procurou lançar ao povo dádivas insignificantes, ou
melhor, dádivas fictícias, com o fito de distraí-lo da ideia sobre a falta de
direitos e sobre o jugo que sofre. Nenhuma luta econômica pode trazer aos
operários uma melhoria estável, nem sequer pode ser levada a cabo em grande
escala, se os operários não têm o direito de organizar livremente suas
assembleias e seus sindicatos, de editar jornais próprios, de enviar seus
mandatários às instituições representativas do povo, como sucede na Alemanha e
em todos os outros Estados europeus (exceto Turquia e Rússia). E, para obter
esses direitos, é necessário levar a cabo uma luta política. Na Rússia não só
os operários, mas todos os cidadãos se veem privados dos direitos políticos. A
Rússia é uma monarquia autocrática, absoluta. O tzar é o único que dita as
leis, nomeia funcionários e os controla. Por isso, parece que na Rússia o tzar
e seu governo não dependem de nenhuma classe e se preocupam com todos de igual
modo. Mas de fato todos os funcionários são designados exclusivamente entre os
que pertencem à classe dos proprietários e todos eles estão submetidos à
influência dos grandes capitalistas, que fazem o que querem dos ministros e
obtêm deles tudo que pretendem. Sobre a classe operária russa pesa um jugo
duplo: os capitalistas e latifundiários espoliam e saqueiam e, para que ela não
possa lutar contra eles, a polícia ata-a de pés e mãos, além de amordaçá-la e
punir todas as suas tentativas de defender os direitos do povo. Toda greve
dirigida contra os capitalistas acarreta o lançamento do exército e da polícia
contra os operários. Toda luta econômica transforma-se necessariamente numa
luta política e a social-democracia deve sempre fundir as duas numa luta única
de classe do proletariado. O primeiro e principal objetivo dessa luta deve ser a
conquista dos direitos políticos, a conquista da liberdade política. Se os
operários de Petersburgo, sozinhos, com uma pequena ajuda dos socialistas,
souberam conseguir rapidamente do governo concessões como a promulgação de uma
lei sobre a redução da jornada de trabalho, toda a classe operária russa, sob a
direção única do Partido Operário Social-Democrata da Rússia², saberá
conseguir, por meio de uma luta tenaz, concessões de importância
incomparavelmente maior.
A classe operária russa saberá levar a cabo
sua luta econômica e política sozinha, inclusive no caso de não receber ajuda
de nenhuma das outras classes. Mas os operários não estão sós na luta política.
A falta completa de direitos do povo e a selvagem arbitrariedade de todos os
funcionários-sátrapas³ indignam também todas as pessoas cultas com um mínimo de
honradez e que não podem concordar com a repressão de toda palavra livre e de
toda ideia livre; indignam os polacos, os finlandeses, os judeus e os adeptos
das seitas religiosas russas, que sofrem perseguições; indignam os pequenos
comerciantes, industriais e camponeses, que não têm para quem apelar em busca
de defesa contra os atropelos dos burocratas e da polícia. Todos esses grupos
da população, em separado, não são capazes de desencadear uma luta política
tenaz; mas quando a classe operária içar a bandeira desta luta, de toda parte
lhe estenderão a mão em auxílio. A social-democracia russa colocar-se-á à
frente de todos os que lutam pelos direitos do povo, de todos os que lutam pela
democracia, e, então, será invencível!
Esses são nossos principais conceitos, que iremos desenvolvendo sistemática e amplamente nas colunas de nosso jornal. Estamos convencidos de que assim marcharemos pelo caminho traçado pelo Partido Operário Social-Democrata da Rússia no “Manifesto” por ele lançado.
Notas dos editores:
1- A Segunda Internacional (Internacional Operária e Socialista): nasceu em 1889 como sucessora da Primeira Internacional. Era uma associação livre de partidos socialdemocratas e trabalhistas, integrada tanto por elementos revolucionários quanto reformistas. Seu caráter progressista chegou ao fim em 1914, quando suas seções mais importantes violaram os princípios mais elementares do socialismo ao apoiar seus governos imperialistas na Primeira Guerra Mundial. Se desintegrou durante a guerra, porém ressurgiu como organização totalmente reformista em 1923.
2- Partido Operário Social Democrata da Rússia (POSDR), filiado a Segunda Internacional, após a cisão de 1903 o partido se dividiu entre mencheviques (minoria, reformistas) e bolcheviques (maioria, revolucionários). A partir de 1918 os bolcheviques passam a se denominar Partido Comunista de Toda a Rússia (Bolcheviques), posteriormente, Partido Comunista da União Soviética – PCUS.
3- Sátrapas: pessoa poderosa que governa como quer.
Edição: Que Fazer.
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1899/09/programa.htm
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