26.6.21

Ponto de Vista Antiimperialista *

"A pequena burguesia, sem excetuar a mais demagógica, se atenuar na prática seus impulsos mais nacionalistas, poderá chegar à mesma estreita aliança com o capitalismo imperialista. O capital financeiro sentir-se-á mais seguro se o poder estiver em mãos de uma classe social mais numerosa que, satisfazendo certas reivindicações mais prementes e atrapalhando a orientação classista das massas, estará em melhores condições de defender os interesses do capitalismo, de ser seu custódio e servo, que a velha e odiada classe feudal. A criação da pequena propriedade, a desapropriação dos latifúndios, o fim dos privilégios feudais não são contrários aos interesses do imperialismo, de modo imediato."

José Carlos Mariátegui**

Junho 1929

José Carlos Mariátegui


1º – Até que ponto a situação das repúblicas latino-americanas pode ser assimilada à dos países semicoloniais? Sem dúvida, a condição econômica destas repúblicas é semicolonial, e, à medida que crescer seu capitalismo e, consequentemente, a penetração imperialista, este caráter de sua economia tende a se acentuar. Mas as burguesias nacionais, que veem na cooperação com o imperialismo a melhor fonte de lucro, sentem-se suficientemente donas do poder político para não se preocuparem seriamente com a soberania nacional. Estas burguesias na América do Sul, que ainda não conhecem – com exceção do Panamá – a ocupação militar ianque, não estão predispostas de forma alguma a admitir a necessidade de lutar pela segunda independência, como supunha ingenuamente a propaganda aprista. O Estado, ou melhor, a classe dominante, não sente falta de um grau mas amplo e certo de autonomia nacional. A revolução da Independência está demasiado próxima, relativamente, seus mitos e símbolos demasiado vivos, na consciência da burguesia e da pequena burguesia. A ilusão da soberania nacional conserva-se em seus principais efeitos. Pretender que nesta camada social surja um sentimento de nacionalismo revolucionário, parecido com o que, em condições diferentes, representa um fator da luta antiimperialista nos países semicoloniais avassalados pelo imperialismo nas últimas décadas na Ásia, seria um erro grave.

Em nossa discussão com os dirigentes do aprismo, reprovando sua tendência a propor um Kuomitang à América Latina, a fim de evitar a imitação europeia e situar a ação revolucionária em uma apreciação exata de nossa própria realidade, sustentávamos há mais de um ano a seguinte tese:

A colaboração com a burguesia, assim como muitos elementos feudais na luta antiimperialista chinesa, explica-se por motivos de raça, de civilização nacional que não existem entre nós. O chinês nobre ou burguês sente-se profundamente chinês. Ao desprezo do branco por sua cultura estratificada e decrépita, responde com o desprezo e o orgulho de sua tradição milenar. A antiimperialismo na China pode, portanto, basear-se no sentimento e no fator nacionalista. Na Indo-América as circunstâncias não são as mesmas. A aristocracia e a burguesia nacional não se sentem solidarizadas com o povo pelo laço de uma história e de uma cultura comuns. No Peru, o aristocrata e o burguês brancos desprezam o popular, o nacional. Sentem-se, acima de tudo, brancos. O pequeno-burguês mestiço imita este exemplo. A burguesia de Lima confraterniza com os capitalistas ianques, e mesmo com seus meros funcionários, no Country Club, no Tennis e nas ruas. O ianque casa-se sem inconveniente de raça nem de religião com a senhorita nativa, e esta não sente escrúpulo de nacionalidade nem de cultura em preferir o casamento com um indivíduo da raça invasora. A moça de classe média também não tem este escrúpulo. A huachafita que conquista um ianque empregado de Grace ou da Foundation sente com satisfação sua condição social melhorar. O fator nacionalista, por estas razões objetivas que todos vocês compreendem, não é decisivo nem fundamental na luta antiimperialista em nosso meio. Só em países como a Argentina, onde existe uma burguesia numerosa e rica, orgulhosa do grau de riqueza e poder em sua pátria, e onde a personalidade nacional tem por estas razões contornos mais claros e nítidos que nestes países atrasados, o antiimperialismo pode (talvez) penetrar facilmente nos elementos burgueses; mas por motivos de expansão e crescimento capitalistas, não por razões de justiça social e doutrina socialista, como é nosso caso.

A traição da burguesia chinesa, a falência do Kuomitang ainda não eram conhecidas em toda sua magnitude. Um conhecimento capitalista, e não por motivos de justiça social e doutrinária, demonstrou quão pouco se podia confiar, mesmo em países como a China, no sentimento nacionalista revolucionário da burguesia.

20.6.21

Nosso Programa*

Lenin (1899)


   A social-democracia internacional¹ atravessa atualmente um período de vacilação ideológica. Até agora as doutrinas de Marx e Engels eram consideradas como a base firme da teoria revolucionária; mas nos dias que correm podem-se ouvir, por toda parte, vozes sobre a insuficiência e caducidade dessas doutrinas. Aquele que se declara social-democrata e tem a intenção de publicar um jornal social-democrata deve determinar com exatidão sua posição frente à questão que não apaixona apenas, absolutamente, os social-democratas alemães.

Domingo Sangrento, 1905, tropas do Czar atiram contra manifestação pacífica.

   Nós nos baseamos integralmente na teoria de Marx: ela transformou pela primeira vez o socialismo, de utopia, em uma ciência, lançou as sólidas bases dessa ciência e traçou o caminho que havia de seguir, desenvolvendo-a e elaborando-a em todos os seus detalhes. A teoria de Marx descobriu a essência da economia capitalista contemporânea, explicando como a contratação do operário, a compra da força de trabalho encobre a escravização de milhões de despojados por um punhado de capitalistas, donos da terra, das fábricas, das minas, etc. Essa teoria demonstrou como todo o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo orienta-se para a substituição da pequena pela grande produção, criando as condições que tornam possível e indispensável a estruturação socialista da sociedade. Ela nos ensinou a ver, sob o manto dos costumes arraigados, das intrigas políticas, das leis sabichonas e doutrinas habilmente urdidas, a luta de classes, a luta que se desenvolve entre as classes possuidoras de todo gênero e as massas despojadas, o proletariado, que está à frente de todos os desempossados. A teoria de Marx estabeleceu a verdadeira tarefa de um partido socialista revolucionário: não arquitetar planos de reestruturação da sociedade nem ocupar-se da prédica aos capitalistas e seus acólitos da necessidade de melhorar a situação dos operários, nem tampouco tramar conjurações, mas sim organizar a luta de classe do proletariado e dirigir esta luta, que tem por objetivo final a conquista do poder político, pelo proletariado e a organização da sociedade socialista.

   E agora perguntamos: que trouxeram de novo a essa teoria aqueles buliçosos “renovadores”, que tanto ruído fizeram em nossos dias, agrupando-se em torno do socialista alemão Bernstein? Absolutamente nada: não avançaram nem um passo a ciência que nos legaram, com a indicação de desenvolvê-la, Marx e Engels; não ensinaram ao proletariado nenhum novo método de luta; só fizeram recolher-se, catando fragmentos de teorias atrasadas e pregando ao proletariado, em vez da doutrina da luta, a das concessões aos inimigos mais encarniçados do proletariado, aos governos e partidos burgueses, que não se cansam de inventar novos métodos de perseguição contra os socialistas. Um dos fundadores e chefes da social-democracia russa, Plekhanov, tinha toda razão ao submeter a uma crítica implacável a última “crítica” de Bernstein, cujas concepções também renegam agora os representantes dos operários alemães (no Congresso de Hanôver). 

   Sabemos que estas palavras provocarão uma carrada de acusações que nos será lançada: gritarão que queremos converter o partido socialista numa seita de “ortodoxos”, que perseguem os “hereges” por sua apostasia do “dogma”, por toda opinião independente, etc. 

   Conhecemos todas essas frases cáusticas tão em voga. Mas elas não contêm um pingo de verdade, um mínimo de bom-senso. Não pode existir um forte partido socialista sem uma teoria revolucionária que agrupe todos os socialistas, da qual eles extraiam todas as suas convicções e apliquem em seus processos de luta e métodos de ação. Defender essa teoria, que segundo sua mais profunda convicção é a verdadeira, contra os ataques infundados e contra as tentativas de alterá-la não significa, de modo algum, ser inimigo de toda crítica. Não consideramos, absolutamente, a teoria de Marx como algo acabado e intocável; estamos convencidos, pelo contrário, de que esta teoria não fez senão fixar as pedras angulares da ciência que os socialistas devem impulsionar em todos os sentidos, sempre que não queiram ficar para trás na vida. Acreditamos que para os socialistas russos é particularmente necessário impulsionar independentemente a teoria de Marx, porque essa teoria fornece apenas os princípios diretivos gerais, que se aplicam em particular na Inglaterra, de modo diferente que na França; na França de modo diferente que na Alemanha; na Alemanha de modo diferente que na Rússia. Pela mesma razão, com muito prazer daremos guarida em nosso jornal aos artigos que tratem de questões teóricas e convidamos todos os camaradas a tratar abertamente os pontos em discussão.

   Quais são, pois, as questões principais que surgem ao aplicar à Rússia o programa comum para todos os social-democratas? Já dissemos que a essência desse programa consiste na organização da luta de classe do proletariado e na direção dessa luta, cujo objetivo final é a conquista do poder político pelo proletariado e a estruturação da sociedade socialista. A luta de classe do proletariado compõe-se da luta econômica (contra capitalistas isolados ou contra grupos isolados de capitalistas pela melhoria da situação dos operários) e da luta política (contra o governo, pela ampliação dos direitos do povo, isto é, pela democracia, e pela ampliação do poder político do proletariado). Alguns social-democratas russos (entre eles, pelo visto, os que editam o jornal Rabotchaia Misl) consideram incomparavelmente mais importante a luta econômica, chegando quase a afastar a luta política para um futuro mais ou menos distante. Tal opinião é profundamente errada. Todos os social-democratas estão de acordo em que se deve organizar a luta econômica da classe operária, em que nesse terreno é preciso levar a cabo uma agitação entre os operários, quer dizer, é preciso ajudá-los em sua luta cotidiana contra os patrões, chamar sua atenção para todos os aspectos e casos de opressão e explicar-lhes, assim, a necessidade de unir-se. Mas esquecer a luta política por causa da luta econômica significaria renegar o princípio fundamental da social-democracia do mundo inteiro, significaria esquecer todos os ensinamentos proporcionados pela história do movimento operário. Os partidários fervorosos da burguesia e do governo a serviço dela tentaram, inclusive, mais de uma vez, organizar associações de operários, de caráter puramente econômico, para, desse modo, desviá-los da “política” e do socialismo. É muito possível que também o governo russo consiga empreender algo nesse sentido, pois sempre procurou lançar ao povo dádivas insignificantes, ou melhor, dádivas fictícias, com o fito de distraí-lo da ideia sobre a falta de direitos e sobre o jugo que sofre. Nenhuma luta econômica pode trazer aos operários uma melhoria estável, nem sequer pode ser levada a cabo em grande escala, se os operários não têm o direito de organizar livremente suas assembleias e seus sindicatos, de editar jornais próprios, de enviar seus mandatários às instituições representativas do povo, como sucede na Alemanha e em todos os outros Estados europeus (exceto Turquia e Rússia). E, para obter esses direitos, é necessário levar a cabo uma luta política. Na Rússia não só os operários, mas todos os cidadãos se veem privados dos direitos políticos. A Rússia é uma monarquia autocrática, absoluta. O tzar é o único que dita as leis, nomeia funcionários e os controla. Por isso, parece que na Rússia o tzar e seu governo não dependem de nenhuma classe e se preocupam com todos de igual modo. Mas de fato todos os funcionários são designados exclusivamente entre os que pertencem à classe dos proprietários e todos eles estão submetidos à influência dos grandes capitalistas, que fazem o que querem dos ministros e obtêm deles tudo que pretendem. Sobre a classe operária russa pesa um jugo duplo: os capitalistas e latifundiários espoliam e saqueiam e, para que ela não possa lutar contra eles, a polícia ata-a de pés e mãos, além de amordaçá-la e punir todas as suas tentativas de defender os direitos do povo. Toda greve dirigida contra os capitalistas acarreta o lançamento do exército e da polícia contra os operários. Toda luta econômica transforma-se necessariamente numa luta política e a social-democracia deve sempre fundir as duas numa luta única de classe do proletariado. O primeiro e principal objetivo dessa luta deve ser a conquista dos direitos políticos, a conquista da liberdade política. Se os operários de Petersburgo, sozinhos, com uma pequena ajuda dos socialistas, souberam conseguir rapidamente do governo concessões como a promulgação de uma lei sobre a redução da jornada de trabalho, toda a classe operária russa, sob a direção única do Partido Operário Social-Democrata da Rússia², saberá conseguir, por meio de uma luta tenaz, concessões de importância incomparavelmente maior.

   A classe operária russa saberá levar a cabo sua luta econômica e política sozinha, inclusive no caso de não receber ajuda de nenhuma das outras classes. Mas os operários não estão sós na luta política. A falta completa de direitos do povo e a selvagem arbitrariedade de todos os funcionários-sátrapas³ indignam também todas as pessoas cultas com um mínimo de honradez e que não podem concordar com a repressão de toda palavra livre e de toda ideia livre; indignam os polacos, os finlandeses, os judeus e os adeptos das seitas religiosas russas, que sofrem perseguições; indignam os pequenos comerciantes, industriais e camponeses, que não têm para quem apelar em busca de defesa contra os atropelos dos burocratas e da polícia. Todos esses grupos da população, em separado, não são capazes de desencadear uma luta política tenaz; mas quando a classe operária içar a bandeira desta luta, de toda parte lhe estenderão a mão em auxílio. A social-democracia russa colocar-se-á à frente de todos os que lutam pelos direitos do povo, de todos os que lutam pela democracia, e, então, será invencível!

Esses são nossos principais conceitos, que iremos desenvolvendo sistemática e amplamente nas colunas de nosso jornal. Estamos convencidos de que assim marcharemos pelo caminho traçado pelo Partido Operário Social-Democrata da Rússia no “Manifesto” por ele lançado.

Notas dos editores:

1- A Segunda Internacional (Internacional Operária e Socialista): nasceu em 1889 como sucessora da Primeira Internacional. Era uma associação livre de partidos socialdemocratas e trabalhistas, integrada tanto por elementos revolucionários quanto reformistas. Seu caráter progressista chegou ao fim em 1914, quando suas seções mais importantes violaram os princípios mais elementares do socialismo ao apoiar seus governos imperialistas na Primeira Guerra Mundial. Se desintegrou durante a guerra, porém ressurgiu como organização totalmente reformista em 1923.

2- Partido Operário Social Democrata da Rússia (POSDR), filiado a Segunda Internacional, após a cisão de 1903 o partido se dividiu entre mencheviques (minoria, reformistas) e bolcheviques (maioria, revolucionários). A partir de 1918 os bolcheviques passam a se denominar Partido Comunista de Toda a Rússia (Bolcheviques), posteriormente,  Partido Comunista da União Soviética – PCUS.

3- Sátrapas: pessoa poderosa que governa como quer.

Edição: Que Fazer.

Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1899/09/programa.htm


12.6.21

Democracia Burguesa e Democracia Proletária*

 Lenin


No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a «democracia» dos capitalistas proclama, e as milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente esta contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo. É precisamente esta contradição que os agitadores e propagandistas do socialismo denunciam constantemente perante as massas a fim de as preparar para a revolução!”



A questão tão descaradamente confundida por Kautsky apresenta-se na realidade assim. 

A não ser para troçar do senso comum e da história, é claro que não se pode falar de «democracia pura» enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. (Digamos entre parênteses que «democracia pura» é não só uma frase de ignorante, que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um hábito, extinguir-se-á, mas nunca será democracia «pura».)

A «democracia pura» é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operários. A história conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir a burguesa.

Se Kautsky consagra até dezenas de páginas a «demonstrar» a verdade de que a democracia burguesa é progressiva em comparação com a Idade Média e de que o proletariado deve obrigatoriamente utilizá-la na sua luta contra a burguesia, isto é precisamente charlatanice de liberal, destinada a enganar os operários. Trata-se de um truísmo não só na culta Alemanha como também na Rússia inculta. Kautsky atira simplesmente areia «sábia» aos olhos dos operários, falando-lhes com ar importante tanto de Weitling, como dos jesuítas no Paraguai e de muitas outras coisas para ocultar a essência burguesa da democracia contemporânea, isto é, capitalista.

Kautsky toma do marxismo aquilo que é aceitável para os liberais, para a burguesia (a crítica da Idade Média, o papel histórico progressista do capitalismo em geral e da democracia capitalista em particular) e rejeita, silencia e atenua no marxismo aquilo que é inaceitável para a burguesia (a violência revolucionária do proletariado contra a burguesia para a suprimir). Eis porque, por força da sua posição objetiva e seja qual for a sua convicção subjetiva, Kautsky se revela inevitavelmente um lacaio da burguesia.

A democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre — e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo — estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres. É esta verdade, que constitui uma parte integrante essencial da doutrina marxista, que o «marxista» Kautsky não compreendeu. Nesta questão — fundamental — Kautsky oferece «amabilidades» à burguesia, em vez de uma crítica científica das condições que fazem de qualquer democracia burguesa uma democracia para os ricos.

Comecemos por recordar ao doutíssimo senhor Kautsky as declarações teóricas de Marx e Engels que o nosso letrado vergonhosamente «esqueceu» (para agradar à burguesia), e depois explicaremos as coisas de maneira mais popular.

Não só o Estado antigo e feudal, mas também «o moderno Estado representativo é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital» (Engels, na sua obra sobre o Estado)[N15]. «Ora, como o Estado é, de fato, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade, mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal» (Engels na carta a Bebel de 28.III.1875)[N16]. «O Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia» (Engels no prefácio à Guerra Civil de Marx)[N17]. O sufrágio universal é «o barómetro da maturidade da classe operária. Mais não pode ser nem será nunca, no Estado de hoje» (Engels na sua obra sobre o Estado[N18]. O senhor Kautsky mastiga da forma mais fastidiosa a primeira parte desta tese, aceitável para a burguesia. Mas o renegado Kautsky passa em silêncio a segunda, que sublinhámos e que não é aceitável para a burguesia!). «A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo . . . Em vez de decidir de três em três anos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir (ver- und zertreten) o povo no Parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio» (Marx na obra sobre a Comuna de Paris, A Guerra Civil em França)[N19].

Cada uma destas teses, que o doutíssimo senhor Kautsky conhece perfeitamente, é para ele uma bofetada e descobre toda a sua traição. Em toda a brochura de Kautsky não há a mínima compreensão destas verdades. Todo o conteúdo da sua brochura é um escárnio do marxismo!

Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai a sua administração, tomai a liberdade de reunião ou de imprensa, tomai a «igualdade dos cidadãos perante a lei», e vereis a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de fato em caso de «violação» pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. Kautsky embeleza desavergonhadamente a democracia burguesa, nada dizendo, por exemplo, daquilo que fazem os burgueses mais democráticos e republicanos na América ou na Suíça contra os operários em greve.

Oh! O sábio e douto Kautsky silencia isto! Ele não compreende, este douto político, que silenciar isto é uma infâmia. Prefere contar aos operários contos para crianças, como por exemplo o de que a democracia significa «proteção da minoria». É incrível, mas é assim! No ano de 1918 do nascimento de Cristo, no quinto ano da carnificina imperialista mundial e de estrangulamento das minorias internacionalistas (isto é, daquelas que não atraiçoaram vilmente o socialismo, como o fizeram os Renaudel e os Longuet, os Scheidemann e os Kautsky, os Henderson e os Webb, etc), em todas as «democracias» do mundo, o douto senhor Kautsky canta com uma voz doce, muito doce, a «proteção da minoria». Quem o desejar, pode lê-lo na página 15 da brochura de Kautsky. E na página 16, esse douto ... indivíduo falar-vos-á dos whigs e dos tories[N20] do século XVIII na Inglaterra!

Oh, sapiência! Oh, refinado servilismo perante a burguesia! Oh, maneira civilizada de rastejar perante os capitalistas e de lhes lamber as botas! Se eu fosse Krupp ou Scheidemann ou Clemenceau ou Renaudel, pagaria milhões ao senhor Kautsky, compensá-lo-ia com beijos de Judas, elogiá-lo-ia perante os operários, recomendaria a «unidade do socialismo» com pessoas tão «respeitáveis» como Kautsky. Escrever brochuras contra a ditadura do proletariado, falar dos whigs e dos tones do século XVIII na Inglaterra, afirmar que democracia significa «proteção da minoria» e silenciar os programas contra os internacionalistas na «democrática» república da América, não são serviços de lacaio à burguesia?

O douto senhor Kautsky «esqueceu» — provavelmente esqueceu por acaso . . . — uma «ninharia», a saber: o partido dominante de uma democracia burguesa só garante a proteção da minoria a outro partido burguês, enquanto o proletariado, em qualquer questão séria, profunda e fundamental, em vez de «proteção da minoria» apenas recebe o estado de guerra ou os pogromes**. Quanto mais desenvolvida é a democracia tanto mais próxima se encontra do pogrome ou da guerra civil em qualquer caso de profunda divergência política perigosa para a burguesia. O douto senhor Kautsky podia ter observado esta «lei» da democracia burguesa no caso Dreyfus[N21] na França republicana, no linchamento de negros e de internacionalistas na democrática república da América, no exemplo da Irlanda e do Ulster na democrática Inglaterra[N22], na perseguição dos bolcheviques e na organização de pogromes contra eles em Abril de 1917 na democrática república da Rússia. Cito intencionalmente exemplos não só do tempo da guerra, mas também do tempo de antes da guerra, do tempo de paz. O melífluo senhor Kautsky prefere fechar os olhos perante estes fatos do século XX e contar aos operários em vez disso coisas espantosamente novas, notavelmente interessantes, inusitadamente instrutivas e incrivelmente importantes sobre os whigs e os tories no século XVIII.

Tomai o parlamento burguês. Será possível admitir que o douto Kautsky nunca tenha ouvido dizer que os parlamentos burgueses estão tanto mais submetidos à Bolsa e aos banqueiros quanto mais desenvolvida está a democracia? Daqui não decorre que não se deva utilizar o parlamentarismo burguês (e os bolcheviques utilizaram-no talvez com maior êxito que qualquer outro partido no mundo, pois em 1912-1914 conquistámos toda a cúria operária da IV Duma[N23]). Mas disto decorre que só um liberal pode esquecer, como Kautsky esquece, o caráter historicamente limitado e relativo do parlamentarismo burguês. No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a «democracia» dos capitalistas proclama, e as milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente esta contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo. É precisamente esta contradição que os agitadores e propagandistas do socialismo denunciam constantemente perante as massas a fim de as preparar para a revolução! E quando começou a era das revoluções, Kautsky voltou-lhe as costas e pôs-se a celebrar os encantos da democracia burguesa moribunda.

A democracia proletária, de que o Poder Soviético é uma das formas, desenvolveu e alargou como nunca no mundo a democracia precisamente para a gigantesca maioria da população, para os explorados e os trabalhadores. Escrever todo um livro sobre a democracia, como fez Kautsky, falando em duas paginazinhas de ditadura e em dezenas de páginas de «democracia pura» e não notar isto é deturpar por completo as coisas como um liberal. Tomai a política externa. Em nenhum país burguês, nem mesmo o mais democrático, ela é feita abertamente. Em toda a parte se engana as massas, e nas democráticas França, Suíça, América, Inglaterra cem vezes mais ampla e refinadamente que nos outros países. O Poder Soviético arrancou revolucionariamente o véu de segredo que encobria a política externa. Kautsky não o notou, silencia isto, se bem que numa época de guerras de rapina e de tratados secretos sobre a «partilha das esferas de influência» (isto é, a partilha do mundo pelos bandidos capitalistas) isto tenha uma importância capital, porque disto depende a questão da paz, a questão da vida ou da morte de dezenas de milhões de pessoas.

Tomai a estrutura do Estado. Kautsky agarra-se às «ninharias», mesmo ao fato de que as eleições são «indiretas» (na Constituição soviética), mas não vê o fundo do problema. Não nota a essência de classe do aparelho de Estado, da máquina de Estado. Na democracia burguesa, servindo-se de mil estratagemas — tanto mais engenhosos e eficazes quanto mais desenvolvida está a democracia «pura» —, os capitalistas afastam as massas da administração, da liberdade de reunião e de imprensa, etc. O Poder Soviético é o primeiro no mundo (falando rigorosamente, o segundo, porque a Comuna de Paris começou a fazer o mesmo) que chama as massas, precisamente as massas exploradas, à administração. Mil barreiras fecham às massas trabalhadoras a participação no parlamento burguês (que nunca resolve as questões mais importantes na democracia burguesa: estas são resolvidas pela Bolsa e pelos bancos), e os operários sabem e sentem, veem e percebem perfeitamente que o parlamento burguês é uma instituição alheia, um instrumento de opressão dos proletários pela burguesia, uma instituição de uma classe hostil, da minoria exploradora.

Os Sovietes são a organização direta das próprias massas trabalhadoras e exploradas, às quais facilita a possibilidade de organizarem elas próprias o Estado e de o administrarem de todas as maneiras possíveis. Precisamente a vanguarda dos trabalhadores e dos explorados, o proletariado das cidades, tem neste sentido a vantagem de ser o mais unido pelas grandes empresas; é-lhe mais fácil que a quaisquer outros eleger e controlar os eleitos. A organização soviética facilita automaticamente a unificação de todos os trabalhadores e explorados em torno da sua vanguarda, o proletariado. O velho aparelho burguês — o funcionalismo, os privilégios da riqueza, da instrução burguesa, das relações, etc. (estes privilégios de fato são tanto mais variados quanto mais desenvolvida está a democracia burguesa) — tudo isso desaparece com a organização soviética. A liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois se expropriam à burguesia as tipografias e o papel. O mesmo acontece com os melhores edifícios, os palácios, palacetes, casas senhoriais, etc. O Poder Soviético retirou imediatamente aos exploradores milhares e milhares destes melhores edifícios, tornando assim um milhão de vezes mais «democrático» o direito de reunião para as massas, esse direito de reunião sem o qual a democracia é um engano. As eleições indiretas dos Sovietes não locais facilitam os congressos dos Sovietes, tornam todo o aparelho mais barato, mais ágil, mais acessível aos operários e aos camponeses num período em que a vida ferve e é necessário poder atuar com especial rapidez para revogar o seu deputado local ou enviá-lo ao congresso geral dos Sovietes.

A democracia proletária é um milhão de vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa. O Poder Soviético é um milhão de vezes mais democrático que a mais democrática república burguesa.

 

Para não notar isto é preciso ser um servidor consciente da burguesia ou um homem totalmente morto politicamente, que não vê a vida viva por trás dos poeirentos livros burgueses, impregnado até à medula de preconceitos democrático-burgueses, pelo que se tornou objetivamente um servidor da burguesia.

Para não perceber isto é preciso ser um homem incapaz de colocar a questão do ponto de vista das classes oprimidas: existe algum país no mundo, entre os países burgueses mais democráticos, onde o operário médio, da massa, o assalariado agrícola médio, da massa, ou semiproletário do campo em geral (isto é, o representante da massa oprimida, da imensa maioria da população) goze, mesmo aproximadamente, da liberdade de realizar as suas reuniões nos melhores edifícios, da liberdade de ter as maiores tipografias e as melhores reservas de papel para expressar as suas ideias e para defender os seus interesses, da liberdade de enviar precisamente homens da sua classe para governar e «organizar» o Estado, como acontece na Rússia Soviética?

Seria ridículo supor que o senhor Kautsky encontre em qualquer país um em mil operários ou assalariados agrícolas informados que duvidasse da resposta a esta pergunta. Instintivamente, ouvindo fragmentos de admissões da verdade através dos jornais burgueses, os operários de todo o mundo simpatizam com a República Soviética porque veem nela a democracia proletária, a democracia para os pobres, e não uma democracia para os ricos, como na realidade é toda a democracia burguesa, mesmo a melhor.

Somos governados (e o nosso Estado é «organizado») por funcionários burgueses, parlamentares burgueses, juízes burgueses. Esta é uma verdade simples, evidente, indiscutível, conhecida por experiência própria, sentida e percebida diariamente por dezenas e centenas de milhões de homens das classes oprimidas de todos os países burgueses, incluindo os mais democráticos.

Mas na Rússia quebramos completamente o aparelho burocrático, não deixamos dele pedra sobre pedra, afastamos todos os velhos juízes, dissolvemos o parlamento burguês e demos precisamente aos operários e aos camponeses uma representação muito mais acessível, os seus Sovietes substituíram os funcionários, ou os seus Sovietes foram colocados acima dos funcionários, os seus Sovietes tornaram eletivos os juízes. Este simples fato basta para que todas as classes oprimidas reconheçam que o Poder Soviético, isto é, esta forma da ditadura do proletariado, é um milhão de vezes mais democrática que a mais democrática república burguesa.

Kautsky não compreende esta verdade, compreensível e evidente para qualquer operário, porque «esqueceu», «desacostumou-se» de colocar a questão: democracia para que classe? Ele raciocina do ponto de vista da democracia «pura» (isto é, sem classes? Ou acima das classes?). Argumenta como Shylock[N24]: «uma libra de carne» e nada mais. Igualdade de todos os cidadãos — senão não há democracia.

Devemos perguntar ao douto Kautsky, ao «marxista» e «socialista»Kautsky: pode haver igualdade entre o explorado e o explorador?

É monstruoso, é inacreditável que tenhamos de fazer esta pergunta ao discutir um livro do chefe ideológico da II Internacional. Mas, «atrelado ao carro, não te queixes da carga». Propusemo-nos escrever sobre Kautsky — é preciso explicar a este douto homem por que não pode haver igualdade entre o explorador e o explorado.

 

Notas:

*Capítulo do livro de Lenin A Revolução proletária e o renegado Kautsky.

** A palavra pogrom, de origem russa, significa "assalto", ou "motim", com saques e assassinatos provocados pelo racismo, de uma parte de uma população contra outra. É usado especificamente em várias línguas para descrever os ataques com pilhagem e derramamento de sangue contra os judeus na Rússia, especialmente aqueles perpetrados pela população cristã, sem qualquer reação das autoridades ou com seu apoio discreto, entre 1881 e 1921. Similar, mas mais limitado, a violência ocorreu ao mesmo tempo. Na Alemanha, na Áustria, na Roménia e nos Balcãs, esses movimentos estão ligados aos movimentos antisemitas; Marrocos, Argélia ou Pérsia, movimentos nacionalistas ou fanatismo religioso.

[N15]Ver Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 21, S. 167. [N16] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 34, S. 129.

[N17] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 625.

[N18] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 21, S. 168.

[N19] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 339, 340.

[N20] Whigs Tories: partidos políticos de Inglaterra, constituídos nos anos 70-80 do século XVII. O partido dos whigs exprimia os interesses dos meios financeiros e da burguesia mercantil, assim como de uma parte da aristocracia aburguesada. Os whigs originaram o partido liberal. Os tories representavam os grandes proprietários rurais e o alto clero anglicano; defendiam as tradições do passado feudal e lutavam contra as reivindicações liberais e progressistas. Mais tarde os tories deram origem ao partido conservador. Os whigs e os tories sucediam-se no poder.

[N21] Lénine faz alusão ao processo provocatório organizado em 1894 pelos círculos monárquicos reaccionários da clique militar francesa contra o judeu Dreyfus, oficial do Estado-Maior General francês, falsamente acusado de espionagem e alta traição. O tribunal militar condenou Dreyfus à prisão perpétua. A condenação de Dreyfus foi aproveitada pelos círculos reaccionários da França para fomentar o anti-semitismo e desencadear uma ofensiva contra o regime republicano e as liberdades democráticas. O caso Dreyfus adquiriu um caráter nitidamente político e cindiu o país em dois campos: republicanos e democratas, por um lado, e o bloco de monárquicos, clericais, anti-semitas e nacionalistas, por outro. Em 1899, sob a pressão da opinião pública, Dreyfus foi indultado e em 1906 completamente reabilitado e reintegrado no exército.

[N22] Trata-se da repressão sangrenta pelos ingleses da insurreição irlandesa de 1916, que tinha por objectivo a libertação do país da dominação britânica.
Ulster: parte norte-oriental da Irlanda, cuja população é maioritariamente inglesa. Tropas do Ulster participaram juntamente com tropas inglesas na repressão da insurreição do povo irlandês.

[N23]Duma de Estado: instituição representativa que o governo tsarista se viu obrigado a convocar em consequência dos acontecimentos revolucionários de 1905. Formalmente, a Duma de Estado era um órgão legislativo, mas de fato não tinha poder efectivo algum. As eleições para a Duma de Estado não eram nem diretas, nem iguais, nem gerais. Os direitos eleitorais das classes trabalhadoras, bem como das nacionalidades não russas que habitavam na Rússia, eram consideravelmente restringidos. Uma grande parte dos operários e camponeses era totalmente privada de direitos eleitorais. A I Duma de Estado (Abril - Julho de 1906) e a II Duma do Estado (Fevereiro—Junho de 1907) foram dissolvidas pelo governo tsarista. Depois de efectuar em 3 de Junho de 1907 um golpe de Estado, o governo tsarista promulgou uma nova lei eleitoral que limitava ainda mais os direitos dos operários, dos camponeses e da pequena burguesia urbana, assegurando o domínio total da aliança reaccionária dos latifundiários e dos grandes capitalistas na III (1907-1912) e na IV (1912-1917) Dumas de Estado.

[N24] Shylock: personagem da comédia de W. Shakespeare O Mercador de Veneza, insensível e cruel usurário que exigia implacavelmente, de acordo com as condições da letra de câmbio, que se cortasse ao seu devedor insolvente uma libra de carne.

Edição: Que Fazer.

Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/index.htm

 

5.6.21

Marxismo e Revisionismo*

 Lenin**

     [...] No domínio da política, o revisionismo tentou rever o que realmente constitui a base do marxismo, ou seja, a teoria da luta de classes. A liberdade política, a democracia, o sufrágio universal, destroem a base da luta de classes – diziam-nos os revisionistas – e desmentem o velho princípio do Manifesto Comunista de que os operários não têm pátria. Uma vez que na democracia impera a “vontade da maioria”, não devemos ver no Estado, segundo eles, o órgão da dominação de classe, nem negar-nos a entrar em alianças com a burguesia progressista, social-reformista, contra os reacionários.



   É indiscutível que estas objeções dos revisionistas se reduziam a um sistema bastante coerente de concepções, a saber: as sobejamente conhecidas concepções burguesas liberais. Os liberais disseram sempre que o parlamentarismo burguês suprime as classes e as diferenças de classe, visto que todos os cidadãos sem exceção têm direito de voto e de intervir nos assuntos do Estado. Toda a história da Europa na segunda metade do século XIX e toda a história da revolução russa, em princípios do século XX, demonstram à evidência como são absurdas tais concepções. Com as liberdades do capitalismo “democrático”, as diferenças econômicas, longe de se atenuarem, acentuam-se e agravam-se. O parlamentarismo não elimina, antes põe a nu, a essência das repúblicas burguesas mais democráticas como órgãos de opressão de classe. Ajudando a esclarecer e educar massas de população incomparavelmente mais extensas do que as que antes participavam de modo ativo nos acontecimentos políticos, o parlamentarismo prepara assim, não a supressão das crises e das revoluções políticas, mas a maior agudização da guerra civil durante essas revoluções. Os acontecimentos de Paris, na Primavera de 1871, e os da Rússia, no Inverno de 1905, mostraram, com excepcional clareza, como esta agudização se produz inevitavelmente. A burguesia francesa, para esmagar o movimento proletário, não vacilou nem um segundo em pactuar com o inimigo de toda a nação, com as tropas estrangeiras que tinham arruinado a sua pátria. Quem não compreender a inevitável dialética interna do parlamentarismo e da democracia burguesa, que conduz a solucionar a disputa pela violência de massas de modo ainda mais brutal do que anteriormente, jamais saberá desenvolver, na base desse parlamentarismo, uma propaganda e uma agitação consequentes do ponto de vista dos princípios, que preparam verdadeiramente as massas operárias para participarem vitoriosamente em tais “disputas”. A experiência das alianças, dos acordos, dos blocos com o liberalismo social-reformista no Ocidente e com o reformismo liberal (democratas-constitucionalistas¹) na revolução russa, demonstrou, de maneira convincente, que esses acordos não fazem senão embotar a consciência das massas, não reforçando, mas debilitando o significado real da sua luta, unindo os lutadores aos elementos menos capazes de lutar, aos elementos mais vacilantes e traidores. O "millerandismo"² francês – a maior experiência de aplicação da táctica política revisionista numa vasta escala, realmente nacional – deu-nos uma apreciação prática do revisionismo que o proletariado do mundo inteiro jamais esquecerá.

   O complemento natural das tendências económicas e políticas do revisionismo era a sua atitude em relação ao objetivo final do movimento socialista. “O objetivo final não é nada, o movimento é tudo” - esta frase proverbial de Bernstein exprime a essência do revisionismo melhor do que muitas longas dissertações. A política revisionista consiste em determinar o seu comportamento em função das circunstâncias, em adaptar-se aos acontecimentos do dia, às viragens dos pequenos fatos políticos, em esquecer os interesses fundamentais do proletariado e os traços essenciais de todo o regime capitalista, de toda a evolução do capitalismo, em sacrificar estes interesses fundamentais em favor das vantagens reais ou supostas do momento. E da própria essência desta política se deduz, com toda a evidência, que pode tomar formas infinitamente variadas e que cada problema um pouco “novo”, cada viragem um pouco inesperada e imprevista dos acontecimentos – embora tal viragem só altere a linha fundamental do desenvolvimento em proporções mínimas e pelo prazo mais curto – dará sempre, inevitavelmente, origem a esta ou àquela variedade de revisionismo. [...]

 

* Fonte: "Marxismo e Revisionismo", 1908,  V.I. LENINE Obras Escolhidas, Editora Alfa-Omega, Vol. I, 3ª edição. p. 40, 1986.

** Vladimir Ilyich Ulianov (1870/1924): Revolucionário marxista, político comunista, principal dirigente e teórico do Partido Bolchevique, líder da Revolução de Outubro na Rússia em 1917.

¹ Partido Democrata-Constitucionalista ("cadetes"): principal partido da burguesia monárquica liberal na Rússia, foi formado em outubro de 1905. Faziam parte dele representantes da burguesia, dos latifundiários e dos intelectuais burgueses. Depois da vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro os democratas-constitucionalistas mostraram-se inimigos irreconciliáveis do Poder Soviético, tomaram parte em todas as ações armadas contra-revolucionárias e campanhas dos intervencionistas.

² Millerandismo (ministerialismo): corrente oportunista na socialdemocracia, assim designada segundo o nome do socialista-reformista francês Millerand que, em 1899, entrou no governo burguês reacionário da França e apoiou a sua política antipopular.

 

O processo de construção socialista e nacional no Cazaquistão e na Ásia Central

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