Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891
Chegou-me
inesperadamente a solicitação para editar de novo a Mensagem do Conselho Geral
internacional sobre A Guerra Civil em França e para a acompanhar de uma
introdução. Por isso só posso tocar aqui, em poucas palavras, os pontos mais
essenciais.
Faço preceder o
referido trabalho, mais extenso, das duas Mensagens, mais curtas, do Conselho
Geral sobre a guerra franco-alemã(1*). Por um lado, porque na Guerra Civil é
referida a segunda, ela mesma não inteiramente compreensível sem a primeira.
Mas também porque estas duas Mensagens, igualmente redigidas por Marx, são
provas eminentes, em nada inferiores à Guerra Civil, do maravilhoso dote do
autor, demonstrado pela primeira vez em O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de
apreender claramente o carácter, o alcance e as consequências necessárias de
grandes acontecimentos históricos, ao tempo em que estes acontecimentos ainda
decorrem diante dos nossos olhos ou apenas acabaram de se consumar. E,
finalmente, porque ainda hoje temos de sofrer, na Alemanha, as consequências,
anunciadas por Marx, daqueles acontecimentos.
Ou não terá acontecido o
que diz a primeira Mensagem, isto é, que se a guerra de defesa da Alemanha
contra Louis Bonaparte degenera numa guerra de conquista contra o povo francês,
toda a desgraça que se abateu sobre a Alemanha, após as chamadas guerras de
libertação[N123], reviverá com renovada violência? Não tivemos nós mais vinte
anos de dominação de Bismarck, não tivemos, em vez das perseguições aos
demagogos[N124], a lei de exceção[N125] e a caça aos socialistas com a mesma
arbitrariedade, com literalmente a mesma revoltante interpretação da lei?
E não ficou
literalmente demonstrada a predição de que a anexação da Alsácia-Lorena iria
«atirar a França para os braços da Rússia» e que, após esta anexação, ou a
Alemanha se tornaria o servo notório da Rússia ou, após breve trégua, teria de
se armar para uma nova guerra, ou seja, «para uma guerra de raças, contra as
raças coligadas dos Eslavos e Latinos»»?(1*) A anexação das províncias
francesas não empurrou a França para os braços da Rússia? Não cortejou Bismarck
em vão, vinte anos inteiros, os favores do tzar, não os cortejou com serviços
ainda mais rasteiros do que os que a pequena Prússia, antes de se ter tornado a
«primeira grande potência da Europa», estava habituada a depor aos pés da Santa
Rússia? E não paira ainda dia a dia sobre as nossas cabeças a espada de
Dâmocles de uma guerra, no primeiro dia da qual todas as alianças
protocolarmente seladas dos príncipes se desfarão como pó de palha de uma
guerra em que nada é certo a não ser a absoluta incerteza do seu desfecho; de uma
guerra de raças que sujeita toda a Europa à devastação por quinze ou vinte
milhões de homens armados e ainda só não está em curso porque mesmo o mais
forte dos grandes Estados militares receia a total imprevisibilidade do
resultado final?
Tanto maior é, por
isso, o dever de tornar de novo acessíveis aos operários alemães estas
brilhantes provas, meio esquecidas, da clarividência da política operária
internacional de 1870.
O que é válido para
estas duas Mensagens também o é para a Guerra Civil em França. A 28 de Maio, os
últimos combatentes da Comuna sucumbiam, nas encostas de Belleville, a [uma]
força superior, e logo dois dias depois, a 30, Marx lia perante o Conselho
Geral o trabalho onde está exposta a significação histórica da Comuna de Paris
em traços breves, vigorosos, mas tão penetrantes e sobretudo tão verdadeiros
como não voltou a conseguir-se em toda a abundante literatura sobre o assunto.
Graças ao
desenvolvimento económico e político da França desde 1789, Paris está desde há
cinquenta anos colocada na situação em que nenhuma revolução pôde ali rebentar
que não tomasse um carácter proletário, de tal modo que o proletariado, que
pagava com o seu sangue a vitória, surgia, depois da vitória, com
reivindicações próprias. Estas reivindicações eram mais ou menos imprecisas e
mesmo confusas, consoante, em cada caso, o grau de desenvolvimento dos
operários parisienses; mas, em conclusão, todas elas apontaram para a
eliminação do antagonismo de classes entre capitalistas e operários. A verdade
é que não se sabia como isso havia de acontecer. Mas a própria reivindicação,
ainda quando indefinidamente sustentada, continha um perigo para a ordem social
estabelecida; os operários que a colocavam estavam ainda armados; para os
burgueses que se encontravam ao leme do Estado, o desarmamento dos operários
era, por isso, imperativo primeiro. Por isso, depois de cada revolução
conquistada pela luta dos operários, nova luta, que termina com a derrota dos
operários.
Isso aconteceu pela
primeira vez em 1848. Os burgueses liberais da oposição parlamentar realizaram
banquetes para a consecução da reforma eleitoral, que havia de assegurar a
dominação do seu partido. Cada vez mais forçados, na luta com o governo, a
apelar ao povo, tiveram de ceder o passo, pouco a pouco, às camadas radicais e
republicanas da burguesia e da pequena burguesia. Mas atrás destas estavam os
operários revolucionários, e estes tinham-se apropriado de muito mais autonomia
desde 1830[N126] do que suspeitavam os burgueses e mesmo os republicanos. No momento
da crise entre governo e oposição, os operários abriram a luta de ruas;
Louis-Philippe desapareceu, com ele a reforma eleitoral; no seu lugar ergueu-se
a República, e precisamente uma República designada como «social» pelos
próprios operários vitoriosos. O que era de entender por esta República social
não estava claro para ninguém, nem mesmo para os operários. Mas agora tinham
eles armas e eram uma força no Estado. Por isso, assim que os republicanos
burgueses que se encontravam ao leme notaram nalguma medida terreno sólido
debaixo dos pés, o seu primeiro objetivo foi desarmar os operários. Isto
aconteceu quando, pela quebra direta da palavra dada, pela humilhação aberta e
pela tentativa de desterrar os desempregados para uma província longínqua, [os
operários] foram empurrados para a insurreição de Junho de 1848[N21]. O governo
tinha-se precavido com uma esmagadora superioridade de forças. Após uma luta heroica
de cinco dias, os operários foram derrotados. E seguiu-se então um banho de
sangue dos prisioneiros desarmados como não se tinha visto um igual desde os
dias das guerras civis que iniciaram a decadência da República romana[N127].
Era a primeira vez que a burguesia mostrava até que louca crueldade de vingança
é levada, logo que o proletariado ousa surgir face a ela como classe à parte,
com interesses e reivindicações próprios. E, ainda assim, 1848 foi uma
brincadeira de crianças perante a sua raiva de 1871.
O castigo não se fez
esperar. Se o proletariado ainda não podia governar a França, a verdade é que a
burguesia já não o podia. Pelo menos nesse tempo, em que na maioria ela tinha
ainda sentimentos monárquicos e estava dividida em três partidos
dinásticos[N128] e num quarto [partido] republicano. As suas querelas
intestinas permitiram ao aventureiro Louis Bonaparte tomar todos os postos de
poder — exército, polícia, maquinaria administrativa — e, a 2 de dezembro de
1851[NI29], fazer saltar o último bastião da burguesia, a Assembleia Nacional.
O segundo Império iniciou a exploração da França por um bando de aventureiros
políticos e financeiros, mas ao mesmo tempo, também, um desenvolvimento
industrial como nunca foi possível sob o sistema mesquinho e timorato de
Louis-Philippe, com a exclusiva dominação de apenas uma pequena parte da grande
burguesia. Louis Bonaparte tomou aos capitalistas o seu poder político, sob o
pretexto de os proteger, a eles burgueses, contra os operários e, por sua vez,
os operários contra aqueles; mas, para isso, a sua dominação favoreceu a
especulação e a atividade industrial, numa palavra, o ascenso e o
enriquecimento do conjunto da burguesia numa medida inaudita até aí. Todavia,
em maior medida ainda, desenvolveram-se a corrupção e o roubo em massa, os
quais se reuniram à volta da corte imperial e sacaram deste enriquecimento as
suas fortes percentagens.
Mas o segundo Império
era o apelo ao chauvinismo francês, era a reivindicação das fronteiras do
primeiro Império perdidas em 1814, no mínimo as da primeira República[N130]. Um
império francês nas fronteiras da velha monarquia, até mesmo nas de 1815, mais
reduzidas ainda, isso era impossível por muito tempo. Daí a necessidade de
guerras e de alargamentos territoriais periódicos. Mas nenhum alargamento de
fronteiras deslumbrava tanto a fantasia dos chauvinistas franceses como o da
margem esquerda alemã do Reno. Para eles, uma milha quadrada no Reno valia mais
do que dez nos Alpes ou noutra parte qualquer. Com o segundo Império, a
reivindicação da margem esquerda do Reno, de uma só vez ou por partes, era
apenas uma questão de tempo. Este tempo veio com a guerra austro-prussiana de
1866[N102]; ludibriado por Bismarck e pela sua própria política ultramanhosa de
vacilação em torno das esperadas «compensações territoriais», mais nada restou
a Bonaparte do que a guerra, que rebentou em 1870 e o fez ir à deriva para
Sedane daí para Wilhelmshöhe[N109].
A consequência
necessária foi a Revolução de Paris de 4 de Setembro de 1870. O Império
desmoronou-se como um castelo de cartas, a República foi proclamada de novo.
Mas o inimigo estava à porta; os exércitos do Império ou estavam encerrados sem
esperança, em Metz, ou aprisionados na Alemanha. Nesta emergência, o povo
consentiu aos deputados de Paris do antigo Corpo legislativo que agissem como
«Governo de defesa nacional». Isto foi tanto mais permitido quanto, então, para
fins de defesa, todos os parisienses aptos a pegar em armas entraram na Guarda
Nacional e foram armados, de modo que os operários formavam agora a grande
maioria. Mas, em breve, estalou a oposição entre o governo quase só composto
por burgueses e o proletariado armado. A 31 de Outubro, batalhões operários
assaltaram a Câmara Municipal e aprisionaram uma parte dos membros do governo;
traição, quebra direta de palavra do governo e a intervenção de alguns
batalhões de pequenos burgueses libertaram-nos de novo; e deixou-se em funções
o governo de até então, para não desencadear a guerra civil no interior de uma
cidade sitiada por força militar estrangeira.
Finalmente, em 28 de janeiro
de 1871, Paris esfomeada capitulou. Mas com honras até aí inauditas na história
da guerra. As fortificações renderam-se, as trincheiras foram desarmadas, as
armas da linha e a Guarda Móvel entregues, e mesmo esta considerada como
prisioneira de guerra. Mas a Guarda Nacional conservou as suas armas e canhões,
e colocou-se apenas em situação de armistício perante os vencedores. E estes
mesmos não ousaram fazer em Paris uma entrada triunfal. De Paris, só ousaram
ocupar um pequeno canto e, ainda assim [um canto] em parte formado por parques
públicos, e até isto só por alguns dias! Durante este tempo, os que tinham
mantido Paris cercada ao longo de 131 dias, foram eles próprios cercados pelos
operários parisienses em armas, os quais velavam cuidadosamente por que nenhum
«prussiano» ultrapassasse os estreitos limites do cantinho abandonado ao
invasor estrangeiro. Tal era o respeito que infundiam os operários parisienses
ao exército diante do qual tinham deposto as armas todos os exércitos do
Império; e os Junker prussianos, que tinham vindo tirar vingança no foco da
revolução, tiveram de se deter, respeitosos, e saudar esta mesma revolução
armada!
Durante a guerra, os
operários parisienses tinham-se limitado a exigir a enérgica continuação da
luta. Mas agora, quando chegava a paz[N131] depois da capitulação de Paris,
Thiers, o novo chefe do governo, tinha de reconhecer que a dominação das
classes possidentes — grandes proprietários rurais e capitalistas — estava em
perigo permanente enquanto os operários parisienses conservassem as armas na
mão. A sua primeira obra foi a tentativa do desarmamento destes. A 18 de Março
enviou tropas de linha com a ordem de roubar a artilharia pertencente à Guarda
Nacional, fabricada durante o cerco de Paris e paga por subscrição pública. A
tentativa falhou, Paris ergueu-se como um só homem para a defesa, e foi
declarada guerra entre Paris e o governo francês sediado em Versalhes. A 26 de
Março foi eleita a Comuna, e proclamada a 28. O Comité Central da Guarda
Nacional, que até aí dirigira a governação, demitiu-se a favor dela, depois de
ter ainda decretado a abolição da escandalosa «polícia de costumes» de Paris. A
30, a Comuna aboliu o recrutamento e o exército permanente e proclamou a Guarda
Nacional, à qual deviam pertencer todos os cidadãos capazes de pegar em armas,
como o único poder armado; isentou todos os pagamentos de rendas de casa de
Outubro de 1870 até Abril, pôs em conta para o prazo de pagamento seguinte as
quantias de arrendamento já pagas e suspendeu todas as vendas de penhores no
montepio municipal. No mesmo dia, os estrangeiros eleitos para a Comuna foram
confirmados nas suas funções, porque a «bandeira da Comuna é a da República
mundial». — A 1 de Abril foi decidido que o vencimento mais elevado de um
empregado da Comuna, portanto dos seus próprios membros também, não poderia
exceder 6000 francos (4800 marcos). No dia seguinte foram decretadas a separação
da Igreja e do Estado e a abolição de todos os pagamentos do Estado para fins
religiosos, assim como a transformação de todos os bens eclesiásticos em
propriedade nacional; em consequência disso, foi ordenada a 8 de abril, e pouco
a pouco cumprida, a exclusão, das escolas, de todos os símbolos religiosos,
imagens, dogmas, orações, numa palavra, «de tudo o que pertence ao âmbito da
consciência de cada um». — A 5, face às execuções diariamente repetidas de
combatentes da Comuna presos pelas tropas de Versalhes, foi promulgado um
decreto destinado à detenção de reféns, mas nunca aplicado. — A 6, a guilhotina
foi trazida pelo 137.° batalhão da Guarda Nacional e queimada publicamente no
meio de ruidoso júbilo popular. — A 12, a Comuna decidiu derrubar, como símbolo
do chauvinismo e do incitamento ao ódio entre povos, a coluna triunfal da Praça
Vendôme, fundida por Napoleão com os canhões conquistados depois da guerra de
1809. Isto foi executado a 16 de maio. — A 16 de Abril a Comuna ordenou um
levantamento estatístico das fábricas paralisadas pelos fabricantes e a
elaboração de planos para o funcionamento destas fábricas com operários nelas
ocupados até então, a unir em associações cooperativas, assim como para a
organização destas associações numa grande federação. — A 20, aboliu o trabalho
noturno dos padeiros assim como os serviços de emprego que desde o segundo
Império funcionavam como monopólio de sujeitos nomeados pela polícia,
exploradores de primeira linha dos operários; estes serviços foram atribuídos aos
municípios dos vinte arrondis-sements(2*) de Paris. — A 30 de Abril ordenou a
supressão das casas de penhores, que era uma exploração privada dos operários e
estavam em contradição com o direito dos operários aos seus instrumentos de
trabalho e ao crédito. — A 5 de Maio decidiu a demolição da capela de
penitência construída como expiação pela execução de Luís XVI.
Evidenciou-se, assim, a
partir de 18 de março, o carácter de classe, incisivo e puro, do movimento
parisiense, até então relegado para segundo plano pela luta contra a invasão
estrangeira. Assim como na Comuna quase só tinham assento operários ou
representantes reconhecidos dos operários assim também as suas resoluções
continham um decidido carácter proletário. Ou decretava reformas que só por cobardia
a burguesia republicana deixara de fazer, mas que constituíam para a livre ação
da classe operária uma base necessária, como a aplicação do princípio segundo o
qual a religião, face ao Estado, é mero assunto privado; ou promulgou
resoluções diretamente no interesse da classe operária e em parte golpeando
profundamente a velha ordem social. Mas tudo isto, numa cidade cercada, podia
quando muito receber um começo de realização. E desde o começo de maio, a luta
contra as tropas do governo de Versalhes, reunidas em número cada vez maior,
exigia todas as forças.
A 7 de Abril, os
versalheses tinham-se apoderado da passagem do Sena, em Neuilly, na frente
ocidental de Paris; em contrapartida, a 11 foram repelidos com baixas, na
frente sul, por um ataque do general Eudes. Paris foi continuamente
bombardeada, precisamente por aquela gente que tinha estigmatizado como um
sacrilégio o bombardeamento da mesma cidade pelos prussianos. Esta mesma gente
mendigava agora, junto do governo prussiano, a restituição acelerada dos
soldados franceses prisioneiros de Sedan e Metz, que para ela deviam
reconquistar Paris. A chegada gradual destas tropas deu aos versalheses uma
decidida supremacia desde o começo de maio. Isto tornou-se evidente quando, a
23 de Abril, Thiers rompeu as negociações propostas pela Comuna para a troca do
arcebispo de Paris(3*) e de toda uma série de outros padres retidos como reféns
em Paris, só por Blanqui, duas vezes eleito para a Comuna, mas prisioneiro em
Clairvaux. E mais ainda na alterada linguagem de Thiers; até aí contido e
equívoco, tornou-se bruscamente insolente, ameaçador, brutal. Na frente sul, os
versalheses tomaram a 3 de Maio a redoute(4*) de Moulin-Saquet, a 9 o Forte de
Issy completamente em destroços, a 14 o de Vanves. Na frente oeste
deslocaram-se pouco a pouco até à própria muralha principal, conquistando as
numerosas aldeias e edifícios que se estendem até à muralha circular; a 21
conseguiram penetrar na cidade por traição e em consequência de negligência da
Guarda Nacional ali colocada. Os prussianos, que ocupavam os fortes a norte e a
leste, permitiram aos versalheses avançar no terreno que, pelo armistício, lhes
estava interdito a norte da cidade, e atacar assim numa larga frente, que os
parisienses deviam supor coberta pelo armistício e que por isso mantinham só
pouco guarnecida. Em consequência disto, houve apenas uma fraca resistência na
metade ocidental de Paris, na cidade de luxo propriamente dita; ela tornou-se
mais violenta e tenaz à medida que as tropas invasoras se aproximavam da metade
oriental, da cidade operária propriamente dita. Só depois de uma luta de oito
dias, os últimos defensores da Comuna sucumbiram no alto de Belleville e de
Ménilmontant; e então o massacre de homens, mulheres e crianças indefesos, que
durante toda a semana grassara em medida crescente, atingiu o seu ponto
culminante. A espingarda já não matava bastante depressa; às centenas, os
vencidos eram abatidos à metralhadora. O «Muro dos Federados» no Cemitério do
Père-Lachaise, onde foi consumado o último massacre em massa, está ainda hoje
de pé, testemunho mudo e eloquente da raiva de que é capaz a classe dominante
logo que o proletariado ousa defender o seu direito. Vieram depois as prisões
em massa, quando se revelou impossível a chacina de todos, o fuzilamento de
vítimas escolhidas arbitrariamente nas filas dos prisioneiros, a evacuação dos
restantes para grandes campos, onde aguardavam comparência perante os conselhos
de guerra. As tropas prussianas, que acampavam à volta da metade nordeste de Paris,
tinham ordem de não deixar passar qualquer fugitivo, porém, os oficiais
fecharam muitas vezes os olhos quando os soldados obedeciam mais ao imperativo
de humanidade do que ao do comando supremo. Designadamente, é devida ao corpo
expedicionário saxão a glória de se ter conduzido muito humanamente e de ter
deixado passar muitos daqueles cuja qualidade de combatentes da Comuna era
visível.
Se hoje, vinte anos
depois, olharmos para trás, para a atividade e a significação histórica da
Comuna de Paris de 1871, acharemos que há ainda alguns aditamentos a fazer à
exposição dada em a Guerra Civil em França.
Os membros da Comuna
dividiam-se numa maioria, os blanquistas[N132], que também tinham predominado
no Comité Central da Guarda Nacional, e numa minoria: os membros da Associação
Internacional dos Trabalhadores, predominantemente seguidores da escola
socialista de Proudhon. Os blanquistas, na grande massa, eram então socialistas
só por instinto revolucionário, proletário; só uns poucos tinham chegado a uma maior
clareza de princípios, através de Vaillant, que conhecia o socialismo
científico alemão. Assim se compreende que, no aspecto económico, não tenha
sido feito muito daquilo que, segundo a nossa concepção de hoje, a Comuna tinha
de ter feito. O mais difícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito
com que se ficou reverenciosamente parado às portas do Banco de França. Foi
também um grave erro político. O Banco nas mãos da Comuna — isso valia mais do
que dez mil reféns. Significava a pressão de toda a burguesia francesa sobre o
governo de Versalhes, no interesse da paz com a Comuna. Mas foi mais prodigioso
ainda o muito de correto que, apesar de tudo, foi feito pela Comuna, composta
que era por blanquistas e proudhonianos. Naturalmente, os proudhonianos são
responsáveis em primeira linha pelos decretos económicos da Comuna, pelos seus
lados gloriosos como pelos não gloriosos, assim como os blanquistas pelos seus atos
e omissões de carácter político. E quis em ambos os casos a ironia da história
— como de costume, quando doutrinários chegam ao leme — que uns e outros
fizessem o contrário do que lhes prescrevia a sua doutrina de escola.
Proudhon, o socialista
do pequeno camponês e do mestre artesão, odiava a associação com positivo ódio.
Dizia dela que comportava mais mal do que bem, que era por natureza infrutífera
porque uma cadeia posta à liberdade do operário; que era um puro dogma,
improdutivo e gravoso, em conflito tanto com a liberdade do operário como com a
poupança de trabalho e que as suas desvantagens cresceriam mais depressa do que
as suas vantagens; que a concorrência, a divisão do trabalho, a propriedade
privada, seriam, frente a ela, forças económicas. Só para os casos excepcionais
— como Proudhon lhes chama — da grande indústria e dos grandes corpos de
empresas, caminhos-de-ferro, por exemplo, seria indicada a associação dos
operários (ver Idée générale de la révolution, 3e étude).
E em 1871, mesmo em
Paris, lugar central do artesanato de arte, a grande indústria tinha de tal
modo deixado de ser um caso excepcional, que o decreto de longe mais importante
da Comuna instituía uma organização da grande indústria e até mesmo da manufatura,
que não só devia basear-se na associação dos operários em cada fábrica mas
unificar também todas estas associações numa grande federação; em resumo, uma
organização que, como diz Marx de maneira inteiramente correta em a Guerra
Civil, tinha de acabar por desembocar no comunismo, por conseguinte, no oposto direto
da doutrina de Proudhon. E por isso, também, a Comuna foi o túmulo da escola
proudhoniana do socialismo. Hoje esta escola desapareceu dos círculos operários
franceses; aqui domina agora de maneira incontroversa a teoria de Marx, entre
os possibilistas[N133] não menos do que entre os «marxistas». Só entre a
burguesia «radical» há ainda proudhonianos.
Os blanquistas não se
saíram melhor. Educados na escola da conspiração, mantidos coesos pela rígida
disciplina que àquela corresponde, partiam da opinião que um número
relativamente pequeno de homens decididos, bem organizados, seria capaz, num
dado momento favorável, não só de tomar o leme do Estado mas também, pelo
desdobramento de grande, de implacável energia, de o conservar até se conseguir
arrastar a massa do povo para a revolução e agrupá-la em torno do pequeno
núcleo dirigente. Para isso era necessária, antes de todas as coisas, a
centralização mais estrita, ditatorial, na mão do novo governo revolucionário.
E que fez a Comuna, que na maioria era precisamente composta por estes
blanquistas? Em todas as suas proclamações aos franceses da província, exortava
estes a uma livre federação de todas as comunas francesas com Paris, a uma
organização nacional que, pela primeira vez, haveria de ser criada
efetivamente por toda a nação. Precisamente o poder repressivo do governo
centralizado anterior — exército, polícia política, burocracia — que Napoleão
tinha criado em 1798 e que, desde então, cada novo governo tinha retomado como
instrumento e utilizado contra os seus adversários, era precisamente esse poder
que deveria cair por toda a parte, como já tinha caído em Paris.
A Comuna teve mesmo de
reconhecer, desde logo, que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não
podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado; que esta classe
operária, para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de
conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até
aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os
seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer
exceção, revogáveis a todo o momento. Em que consistia a qualidade
característica do Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os
seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus
interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se
transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares,
de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não
meramente na monarquia hereditária, mas igualmente na república democrática. Em
parte alguma os «políticos» formam um destacamento da nação mais separado e
mais poderoso do que precisamente na América do Norte. Ali, cada um dos dois
grandes partidos aos quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio
governado por pessoas que fazem da política um negócio, que especulam com
lugares nas assembleias legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que
vivem da agitação para o seu partido e são, após a vitória deste, recompensados
com cargos. É sabido que os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir
este jugo tornado insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais
fundo nesse pântano da corrupção. É precisamente na América que podemos ver
melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade,
quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe
ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente — excetuados os poucos
homens para a vigilância dos índios — nem burocracia com emprego fixo ou
direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de
especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o
exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é
impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu
serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam.
Contra esta
transformação, inevitável em todos os Estados até agora existentes, do Estado e
dos órgãos do Estado, de servidores da sociedade em senhores da sociedade,
aplicou a Comuna dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os
cargos administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio
universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes
mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços,
grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam. O ordenado
mais elevado que ela pagava era de 6000 francos. Assim se fechou a porta,
eficazmente, à caça aos cargos e à ganância da promoção, mesmo sem os mandatos
imperativos que, além do mais, no caso dos delegados para corpos
representativos ainda foram acrescentados.
Esta destruição do
poder de Estado até aqui existente e a sua substituição por um novo, na verdade
democrático, está descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil.
Mas era necessário entrar resumidamente aqui, mais uma vez, nalguns traços
daquele porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado transpôs-se
da filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários.
Segundo a representação filosófica, o Estado é a «realização da Ideia», ou o
reino de Deus na terra traduzido para o filosófico, domínio onde se realizam ou
devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. E daí resulta, pois, uma
veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que com o Estado se relaciona, a
qual aparece tanto mais facilmente quanto se está habituado, desde criança, a
imaginar que os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não poderiam
ser tratados de outra maneira do que como têm sido até aqui, ou seja, pelo
Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se ter já dado um passo
imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na monarquia hereditária e
jura pela república democrática. Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa
senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na
república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um
mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e
cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais
possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas,
livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do
Estado.
O filisteu socialdemocrata
caiu recentemente, outra vez, em salutar terror, à palavra: ditadura do
proletariado. Ora bem, senhores, quereis saber que rosto tem esta ditadura?
Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado.
Londres, no vigésimo
aniversário da Comuna de Paris, 18 de Março de 1891. F. Engels
Publicado na revista
Die Neue Zeit. Bd. 2, n." 28, 1890-1891, e no livro: Karl Marx, Der
Burgerkrieg in Frankreich, Berlin, 1891. Publicado segundo o texto do livro,
Traduzido do alemão.
Notas de rodapé:
(1*) Ver o presente
tomo, p. 216. (Nota da edição portuguesa.)
(1*a) Ver nota 1* acima
(2*) Em francês no
texto: termo que designa, em França, uma divisão territorial e administrativa.
(Nota da edição portuguesa.)
(3*) Darboy.
(4*) Em francês no
texto: fortificação geralmente rodeada por um fosso. (Nota da edição
portuguesa.)
Notas de fim de tomo:
[N21] Insurreição de
Junho: insurreição heroica dos operários de Paris em 23-26 de junho de 1848,
reprimida com excepcional crueldade pela burguesia francesa. A insurreição foi
a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia.
[N102] Depois de
derrotadas na guerra austro-prussiana de 1866, e quando se intensificava a
crise do Estado austríaco multinacional, as classes dirigentes da Áustria
estabeleceram conversações com os latifundiários da Hungria e em 1867
subscreveram um acordo sobre a formação da monarquia dualista da
Áustria-Hungria.
[N109] A 2 de Setembro
o exército francês foi derrotado em Sedan e feito prisioneiro, juntamente com o
imperador. Entre 5 de Setembro de 1870 e 19 de março de 1871 Napoleão III e os
comandantes do exército estiveram presos em Wilhelmshöle (perto de Kassel), num
castelo do rei da Prússia. A catástrofe de Sedan acelerou a derrocada do Segundo
Império e levou à proclamação da república em França a 4 de setembro de 1870.
Foi formado um novo governo, o chamado «governo da defesa nacional».
[N122] A presente
introdução foi escrita para a terceira edição alemã do trabalho de Marx A
Guerra Civil em França, publicada em 1891 para comemorar o vigésimo aniversário
da Comuna de Paris. Depois de apontar o significado histórico da experiência da
Comuna de Paris e da sua generalização teórica por Marx em A Guerra Civil em
França, Engels, na sua introdução, acrescentou um certo número de dados
referentes à história da Comuna de Paris, em particular sobre a atividade dos
blanquistas e dos proudhonistas participantes na Comuna. Nesta edição Engels
incluiu a primeira e a segunda mensagens, escritas por Marx, do Conselho Geral
da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana,
que nas edições posteriores nas diferentes línguas foram também publicadas
juntamente com A Guerra Civil em França.
[N123] Trata-se da
guerra de libertação nacional do povo alemão contra o domínio napoleónico em
1813-1814.
[N124] Demagogos era o
termo com que, na Alemanha dos anos 20 do século XIX, eram designados os
participantes no movimento de oposição entre a intelectualidade alemã, que atuavam
contra o regime reacionário nos Estados alemães e exigiam a unificação da
Alemanha. Os «demagogos» foram cruelmente perseguidos pelas autoridades alemãs.
[N125] A lei de exceção
contra os socialistas foi adoptada na Alemanha em 21 de Outubro de 1878. De
acordo com a lei foram proibidas todas as organizações do Partido Socialdemocrata,
as organizações operárias de massas e a imprensa operária, a literatura
socialista foi confiscada e os sociais-democratas foram perseguidos. Sob a
pressão do movimento operário de massas a lei foi revogada a 1 de outubro de
1890.
[N126] Trata-se da
revolução burguesa de julho de 1830 em França.
[N127] Trata-se da
guerra civil que se prolongou de 44 a 27 a.n.e, e que terminou com a
instauração do Império Romano.
[N128] Trata-se dos
legitimistas, dos orleanistas e dos bonapartistas.
Legitimistas:
partidários da dinastia dos Bourbons, derrubada em França em 1792, que
representava os interesses da grande aristocracia rural e do alto clero;
formou-se como partido em 1830, depois do segundo derrubamento desta dinastia.
Em 1871 os legitimistas participaram na campanha geral das forças
contra-revolucionárias contra a Comuna de Paris.
Orleanistas:
partidários dos duques de Orleães, ramo da dinastia dos Bourbons que subiu ao
poder durante a Revolução de Julho de 1830 e que foi derrubado com a revolução
de 1848; representavam os interesses da aristocracia financeira e da grande
burguesia.
[N129] Trata-se do
golpe de Estado realizado por Louis Bonaparte em 2 de Dezembro de 1851 e que
marcou o início do regime bonapartista do Segundo Império.
[N130] A primeira
república foi proclamada em 1792 durante a grande revolução burguesa francesa
do século XVIII e substituída em 1799 pelo Consulado e depois pelo Primeiro
Império, de Napoleão I Bonaparte (1804-1814). Neste período a França travou
numerosas guerras, em resultado das quais se alargaram consideravelmente as
fronteiras do Estado.
[N131] Trata-se do
tratado de paz preliminar entre a França e a Alemanha, subscrito em Versalhes
em 26 de fevereiro de 1871 por Thiers e J. Favre, por um lado, e por Bismarck,
por outro lado. De acordo com as condições deste tratado, a França cedia à
Alemanha a Alsácia e a Lorena Oriental e pagava uma indemnização de cinco mil
milhões de francos. O tratado de paz definitivo foi assinado em Frankfurt am Main
a 10 de maio de 1871.
[N132] Blanquistas:
partidários da corrente do movimento socialista francês chefiada por Louis
Auguste Blanqui, destacado revolucionário, representante do comunismo utópico
francês. O lado fraco dos blanquistas era a sua convicção de que a revolução
poderia ser realizada por um pequeno grupo de conspiradores, a sua
incompreensão da necessidade de atrair as massas operárias para o movimento
revolucionário.
[N133] Possibilistas:
corrente oportunista do movimento socialista francês, chefiada por Brousse,
Malon e outros que em 1882 provocaram uma cisão no Partido Operário Francês. Os
dirigentes desta corrente proclamavam o princípio reformista de procurar
alcançar apenas o «possível»; daí o seu nome.
Carta a Joseph Weydemeyer
Karl Marx
5 de Março de 1852
Londres, 5 de Março de 1852
[...] No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas burgueses a anatomia econômica das mesmas. O que de novo eu fiz, foi:
1. demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção;
2. que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado;
3. que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes. [...]
Primeira Edição: Publicado segundo o manuscrito. Primeira publicação integral na revista Jungsozialistische Blätter. 1930.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial"Avante!" - Edição dirigida por um coletivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.
Tradução: Traduzido do alemão por Eduardo CHITAS.
Edição: Que Fazer
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