18.10.21

Poder Proletário e Partido Dirigente*

Charles Bettelheim



 1. AS CARACTERÍSTICAS DE UM PODER PROLETÁRIO


Face às confusões que durante muito tempo existiram, e que ainda não desapareceram, é preciso lembrar que a ditadura do proletariado tem essencialmente como efeito permitir o estabelecimento de determinadas das condições políticas requeridas para que os produtores diretos possam dominar coletivamente, quer dizer, à escala social, os seus meios de produção e as suas condições de existência. É preciso lembrar também que este domínio não é de modo algum assegurado apenas pela estatização dos meios de produção e pela «planificação econômica». O que comanda este domínio, que só se adquire através de uma longa luta de classes, é antes de mais, mas não unicamente, a detenção do poder pelos produtores. Pode recordar-se aqui o que Lenine escrevia em 1917:

«A questão do poder é certamente a questão mais importante de qualquer revolução. Qual é a classe que detém o poder? Este é o fundo do problema... a questão do poder não pode ser iludida nem relegada para último plano... é a questão fundamental, aquela que determina todo o desenvolvimento da revolução, a sua política externa e interna.»(1)

O domínio dos trabalhadores sobre as suas condições de existência exige, antes de mais nada, que o antigo aparelho de Estado seja destruído e substituído por um aparelho radicalmente diferente. Se o novo aparelho de Estado é semelhante, no essencial, ao antigo, só poderá assegurar a reprodução das mesmas relações sociais.

O conteúdo fundamental da diferença entre um aparelho de Estado proletário e um aparelho de Estado burguês é a não-separação do aparelho de Estado proletário em relação às massas, a sua subordinação a estas, portanto, o desaparecimento daquilo a que Lenine chamava «um Estado no sentido próprio»(2) e a sua substituição pelo «proletariado organizado em classe dominante».(3)

Para que os produtores diretos possam dominar as suas condições de existência é necessário que tenha desaparecido o antigo tipo de aparelho de Estado, que concentra em si mesmo o essencial das decisões políticas e dos meios de execução e dispõe de forças repressivas autônomas que não hesita em utilizar contra as massas trabalhadoras.

Sem cair no formalismo dos «critérios abstratos» estabelecidos à margem de qualquer consideração de tempo e de espaço, pode dizer-se que um sinal extremamente importante do caráter não proletário do poder, ou de que o poder já perdeu largamente o seu caráter proletário, é a existência de um aparelho de Estado colocado acima das massas e que age de forma autoritária em relação a elas.

O caráter significativo deste índice da natureza não proletária do poder é ainda reforçado se as relações de subordinação das massas em relação ao aparelho de Estado são redobradas por relações análogas entre as massas e o partido dirigente (mais adiante volto a este ponto).

Quando o aparelho de Estado está separado das massas e colocado acima delas e o partido dirigente, em vez de lutar contra esta situação, contribui para a reforçar, estão reunidas as condições objetivas para que se reproduzam relações políticas de opressão, no interior das quais se podem também reproduzir relações de exploração. Quando um sobretrabalho é imposto aos produtores diretos pelos não-produtores e quando a utilização do produto desse sobretrabalho não é controlado pelos produtores, mas decidido à margem deles, mesmo que seja através de um «plano econômico», tais relações de exploração existem. Também é sabido que pode haver exploração mesmo que o produto do sobretrabalho não seja consumido individualmente pelos que controlam o seu emprego. Aliás, o aspecto principal da exploração capitalista é o de ser uma exploração efetuada com vista à acumulação e não ao consumo.

Em resumo, se é um aparelho de Estado separado das massas que detém os meios de produção (devido à estatização destes) e se, além disso, este aparelho não está submetido ao controlo dum partido ligado às massas e que ajude estas a lutar pelo controle do emprego dos meios de produção, estamos em presença de uma estrutura de relações que reproduz a separação dos produtores diretos dos seus meios de produção. Nestas condições, se a combinação das forças de trabalho e dos meios de produção se realiza através de uma relação salarial, isto significa que as relações de produção são relações capitalistas e que os que ocupam postos de direção no aparelho de Estado central e nos aparelhos a ele ligados constituem um capitalista coletivo, uma burguesia de Estado.

Como incidentalmente atrás observamos, seria dogmático e formalista tentar propor um critério abstrato e isolado do caráter proletário do Estado sem tomar em consideração as condições históricas concretas e, particularmente, a natureza das relações entre o Estado e o partido dirigente, as características deste partido e o sentido em que se dirige a sua ação. É por isso que não existe um «modelo único» da não-separação, quer dizer, da unidade entre o aparelho de Estado e as massas, mas apenas formas concretas correspondentes às condições históricas da luta de classes.

Os exemplos históricos de surgimento de tais formas de unidade são constituídos pela Comuna de Paris, pelos Sovietes de 1917 na Rússia e pelas diversas formas de poder popular na China (tanto as formas «civis» como as formas «militares»: o Exército Popular de Libertação é, sem dúvida, o primeiro exército não separado do povo, mas, pelo contrário, nele integrado e ao seu serviço).

A experiência histórica mostra que, devido às relações ideológicas dominantes, produto de séculos de opressão e de exploração e que se reproduzem com base numa divisão social do trabalho que não pode ser imediatamente revolucionarizada, as formas políticas que permitem aos produtores diretos organizarem-se eles próprios como classe dominante tendem espontaneamente, se não se travar uma luta sistemática contra essa tendência, a transformar-se no sentido de uma «autonomização» dos órgãos do poder, isto é, no sentido de uma nova separação entre as massas e o aparelho de Estado, e, portanto, da reconstituição de relações políticas de opressão e de relações econômicas de exploração. Por isso, durante todo o período de transição, há uma luta entre as duas vias: a via socialista e a via capitalista.

Dizer que uma formação social em transição segue a via socialista é dizer que ela está empenhada num processo de transformação revolucionária que permite às massas trabalhadoras dominarem cada vez mais as suas condições de existência, ou seja, libertarem-se cada vez mais. Dizer que determinada formação segue uma via capitalista é dizer que ela está empenhada num processo que submete cada vez mais as massas trabalhadoras às exigências de um processo de reprodução que elas não controlam e que, em última análise, só pode, portanto, servir os interesses de uma minoria, a minoria que utiliza o aparelho de Estado para estabelecer e consolidar as condições da sua própria dominação.

A via seguida por uma formação social é sempre um produto da luta de classes. Esta opõe os que lutam pelo triunfo da via socialista aos que lutam pelo triunfo da via capitalista. Os primeiros são constituídos pelo proletariado e pelo conjunto das classes populares a ele associadas; os segundos são constituídos pelo conjunto das forças sociais burguesas, tenham elas ou não pertencido à antiga burguesia ou estejam elas ou não «conscientes» do fato de que a linha política que defendem conduz à perda do poder pelo proletariado. Nas condições de estatização dos meios de produção, o local privilegiado de constituição ou de reconstituição das forças sociais burguesas é o próprio aparelho de Estado, as cúpulas do partido dirigente e as dos aparelhos ideológicos e econômicos. Para que o proletariado não deixe de ter o papel dirigente é necessário que, na prática, conserve sempre a iniciativa nas frentes ideológicas e políticas. Para isso, precisa de continuar unido e estreitamente associado ao conjunto das classes populares igualmente interessadas no socialismo. Estas condições só podem ser preenchidas se o proletariado dispuser de um aparelho ideológico e político próprio: um partido marxista-leninista. E aqui surge uma segunda categoria de problemas.

 

2. AS CARACTERÍSTICAS DO PARTIDO DIRIGENTE

O núcleo destes problemas é o seguinte: para ajudar o proletariado e as classes populares a ele associadas a avançarem na via socialista não basta que o partido marxista-leninista, que guiou o proletariado na conquista do poder, se conserve aparentemente «o mesmo»: é necessário que ele não mude realmente de caráter de classe», portanto, é necessário que continue a ser um partido proletário; com efeito, não pode existir ditadura do proletariado se o partido dirigente não é o da classe operária.

O caráter proletário do partido não se releva evidentemente da «auto-proclamação», da afirmação pelo próprio partido da sua vontade de «construir o socialismo» ou da sua «determinação de ser fiel ao marxismo-leninismo» ou a um «ideal revolucionário». Este caráter só pode ser determinado por uma análise concreta que revelará se as práticas políticas e ideológicas do partido dirigente são ou não práticas proletárias.

A experiência histórica permite, a partir de agora, caracterizar melhor a natureza de classe das práticas políticas e ideológicas que um partido dirigente desenvolve. Esta experiência, iluminada pela teoria marxista, leva-nos a concluir que o caráter de classe da prática ideológica e política de um partido se manifesta na forma das suas relações com as massas, nas relações internas do partido e nas relações deste com o aparelho de Estado.

Se as relações concretas entre o partido dirigente e as massas não são as que correspondem a uma prática proletária e se, no próprio partido, as relações autoritárias prevalecem sobre a discussão e a luta ideológica, é inevitável que as concepções teóricas efetivas do partido se afastem cada vez mais do conteúdo revolucionário do marxismo. Não pode haver concepções teóricas justas na ausência de uma prática política correta. Por conseguinte, para que os princípios marxistas-leninistas a que se refere um partido dirigente continuem vivos e não «funcionem» como um dogma morto, desligados da vida, é necessário que o partido e os seus membros não desenvolvam práticas autoritárias, que submetam à crítica os que se comprometem em tais práticas e que façam constantemente apelo à crítica das massas.

Em resumo, um partido dirigente só pode ser um partido proletário se não pretender comandar as massas e se, pelo contrário, for o instrumento das suas iniciativas. Isto só é possível se ele se submeter efetivamente à crítica das massas, se não pretender impor-lhes o que elas «devem» fazer, se partir daquilo que as massas estão aptas a realizar e que auxilia o desenvolvimento de relações socialistas. Para auxiliar este desenvolvimento, o partido deve saber reconhecer o que é que vai no sentido deste; é muito particularmente para isto que a teoria marxista-leninista deve servir.

O papel de um partido proletário, portanto, é ajudar as massas a realizarem elas próprias aquilo que é conforme aos seus interesses fundamentais. Em cada etapa de uma luta ininterrupta pela transformação das relações sociais, o partido deve guiar as massas a avançarem o mais longe possível na via das iniciativas que permitem consolidar e desenvolver relações sociais proletárias, tendo em conta os limites objetivos e subjetivos do momento e do lugar.

Um partido proletário não pode pretender «agir em vez» das massas. Estas, com efeito, devem transformar-se elas próprias ao mesmo tempo que transformam o mundo objetivo, e só podem transformar-se através da sua própria experiência, das vitórias e dos fracassos. Só assim podem as massas conquistar uma consciência, uma vontade, uma capacidade coletiva, ou seja, a sua liberdade de classe.

Portanto, uma política proletária — única garantia da conservação do poder pelo proletariado — deve assegurar que as massas realizem elas próprias aquilo que objetivamente é do seu interesse fazerem, isto na medida em que estejam subjetivamente prontas para o fazer. Toda a violação da consciência e da vontade própria das massas constitui um passo atrás. São passos atrás deste tipo que podem levar à perda do poder pelo proletariado.

Por conseguinte, o papel do partido consiste não só em definir objetivos justos, mas sem discernir o que é que as massas estão aptas a fazer e levá-las para a frente sem jamais recorrer à coerção mas lançando palavras de ordem e diretivas de que as massas possam apoderar-se, elaborando uma tática e uma estratégia adequadas e ajudando as massas a organizarem-se.

É em função da exigência de tais relações entre o partido e as massas, é em função de tais práticas que é essencial, como escreve Mao Tsé-tung, que «a ditadura não se exerça no seio do povo» e que as massas populares «gozem da liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de desfile, de manifestação, de crença religiosa e de outras liberdades».(4)

Dizer que a ditadura não se exerce no seio do povo é dizer também que ela não se exerce sobre a pequena burguesia e, particularmente, sobre as camadas menos ricas do campesinato médio. O proletariado e o seu partido devem conduzir a pequena burguesia para a via do socialismo, que é a própria via do seu interesse real, mas não devem exercer uma coerção sobre ela. Trata-se é de conduzir uma luta ideológica que permita, segundo uma outra fórmula de Mao Tsé-tung, «arrastar as ideias pequeno-burguesas na esteira das ideias proletárias».

Estas são algumas das características das práticas políticas e ideológicas que manifestam que um partido é, ao mesmo tempo, um partido dirigente e um partido proletário, quer dizer, um partido que dirige as massas, mas que não comanda, um partido que centraliza as iniciativas das massas para as ajudar a travar batalhas políticas, unificadas. Para o exercício da ditadura do proletariado é necessário um partido que proceda deste modo, pois é graças à sua ajuda que o proletariado e as classes populares podem tornar-se cada vez mais senhores das suas condições de existência, avançando no caminho da sua liberdade coletiva, o que só é possível na base da sua unidade, mas de uma unidade realmente querida e não imposta.

*Trecho do livro "Sociedades de transição: luta de classes e ideologia proletária".

Notas:

(1) Lenine, «Uma das questões fundamentais da Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, p. 398.

(2) Cf. as notas de Lenine sobre a Crítica do programa de Gotha, notas tomadas em Janeiro-Fevereiro de 1917.

(3) Cf. Lenine, «O Estado e a Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, op. cit., p. 467.

(4) «Da justa solução das contradições no seio do povo», citado de acordo com Quatre essais philosophiques, Pequim, 1966, p. 93.

Fonte: https://www.marxists.org/portugues/bettelheim/index.htm

Edição: Que Fazer


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