Charles Bettelheim
Face às confusões que
durante muito tempo existiram, e que ainda não desapareceram, é preciso lembrar
que a ditadura do proletariado tem essencialmente como efeito permitir o
estabelecimento de determinadas das condições políticas requeridas para que os produtores
diretos possam dominar coletivamente, quer dizer, à escala social, os seus
meios de produção e as suas condições de existência. É preciso lembrar também
que este domínio não é de modo algum assegurado apenas pela estatização dos
meios de produção e pela «planificação econômica». O que comanda este domínio,
que só se adquire através de uma longa luta de classes, é antes de mais, mas
não unicamente, a detenção do poder pelos produtores. Pode recordar-se aqui o
que Lenine escrevia em 1917:
«A questão do poder é
certamente a questão mais importante de qualquer revolução. Qual é a classe que
detém o poder? Este é o fundo do problema... a questão do poder não pode ser
iludida nem relegada para último plano... é a questão fundamental, aquela que
determina todo o desenvolvimento da revolução, a sua política externa e
interna.»(1)
O domínio dos
trabalhadores sobre as suas condições de existência exige, antes de mais nada,
que o antigo aparelho de Estado seja destruído e substituído por um aparelho
radicalmente diferente. Se o novo aparelho de Estado é semelhante, no
essencial, ao antigo, só poderá assegurar a reprodução das mesmas relações
sociais.
O conteúdo fundamental
da diferença entre um aparelho de Estado proletário e um aparelho de Estado
burguês é a não-separação do aparelho de Estado proletário em relação às
massas, a sua subordinação a estas, portanto, o desaparecimento daquilo a que
Lenine chamava «um Estado no sentido próprio»(2) e a sua substituição pelo
«proletariado organizado em classe dominante».(3)
Para que os produtores diretos
possam dominar as suas condições de existência é necessário que tenha
desaparecido o antigo tipo de aparelho de Estado, que concentra em si mesmo o
essencial das decisões políticas e dos meios de execução e dispõe de forças
repressivas autônomas que não hesita em utilizar contra as massas
trabalhadoras.
Sem cair no formalismo
dos «critérios abstratos» estabelecidos à margem de qualquer consideração de
tempo e de espaço, pode dizer-se que um
sinal extremamente importante do caráter não proletário do poder, ou de que o
poder já perdeu largamente o seu caráter proletário, é a existência de um
aparelho de Estado colocado acima das massas e que age de forma autoritária em
relação a elas.
O caráter significativo
deste índice da natureza não proletária do poder é ainda reforçado se as
relações de subordinação das massas em relação ao aparelho de Estado são
redobradas por relações análogas entre as massas e o partido dirigente (mais
adiante volto a este ponto).
Quando
o aparelho de Estado está separado das massas e colocado acima delas e o
partido dirigente, em vez de lutar contra esta situação, contribui para a
reforçar, estão
reunidas as condições objetivas para que se reproduzam relações políticas de
opressão, no interior das quais se podem também reproduzir relações de
exploração. Quando um sobretrabalho é imposto aos produtores diretos pelos
não-produtores e quando a utilização do produto desse sobretrabalho não é
controlado pelos produtores, mas decidido à margem deles, mesmo que seja
através de um «plano econômico», tais relações de exploração existem. Também é
sabido que pode haver exploração mesmo que o produto do sobretrabalho não seja
consumido individualmente pelos que controlam o seu emprego. Aliás, o aspecto
principal da exploração capitalista é o de ser uma exploração efetuada com
vista à acumulação e não ao consumo.
Em resumo, se é um
aparelho de Estado separado das massas que detém os meios de produção (devido à
estatização destes) e se, além disso, este aparelho não está submetido ao
controlo dum partido ligado às massas e que ajude estas a lutar pelo controle
do emprego dos meios de produção, estamos em presença de uma estrutura de
relações que reproduz a separação dos produtores diretos dos seus meios de
produção. Nestas condições, se a combinação das forças de trabalho e dos meios
de produção se realiza através de uma relação salarial, isto significa que as
relações de produção são relações capitalistas e que os que ocupam postos de direção
no aparelho de Estado central e nos aparelhos a ele ligados constituem um
capitalista coletivo, uma burguesia de Estado.
Como incidentalmente
atrás observamos, seria dogmático e formalista tentar propor um critério abstrato
e isolado do caráter proletário do Estado sem tomar em consideração as
condições históricas concretas e, particularmente, a natureza das relações
entre o Estado e o partido dirigente, as características deste partido e o
sentido em que se dirige a sua ação. É por isso que não existe um «modelo
único» da não-separação, quer dizer, da unidade entre o aparelho de Estado e as
massas, mas apenas formas concretas correspondentes às condições históricas da
luta de classes.
Os exemplos históricos
de surgimento de tais formas de unidade são constituídos pela Comuna de Paris,
pelos Sovietes de 1917 na Rússia e pelas diversas formas de poder popular na
China (tanto as formas «civis» como as formas «militares»: o Exército Popular
de Libertação é, sem dúvida, o primeiro exército não separado do povo, mas,
pelo contrário, nele integrado e ao seu serviço).
A experiência histórica
mostra que, devido às relações ideológicas dominantes, produto de séculos de
opressão e de exploração e que se reproduzem com base numa divisão social do
trabalho que não pode ser imediatamente revolucionarizada, as formas políticas que
permitem aos produtores diretos organizarem-se eles próprios como classe
dominante tendem espontaneamente, se não se travar uma luta sistemática contra
essa tendência, a transformar-se no sentido de uma «autonomização» dos órgãos
do poder, isto é, no sentido de uma nova separação entre as massas e o aparelho
de Estado, e, portanto, da reconstituição de relações políticas de opressão e
de relações econômicas de exploração. Por isso, durante todo o período de
transição, há uma luta entre as duas vias: a via socialista e a via
capitalista.
Dizer que uma formação
social em transição segue a via socialista é dizer que ela está empenhada num
processo de transformação revolucionária que permite às massas trabalhadoras
dominarem cada vez mais as suas condições de existência, ou seja, libertarem-se
cada vez mais. Dizer que determinada
formação segue uma via capitalista é dizer que ela está empenhada num processo
que submete cada vez mais as massas trabalhadoras às exigências de um processo
de reprodução que elas não controlam e que, em última análise, só pode,
portanto, servir os interesses de uma minoria, a minoria que utiliza o aparelho
de Estado para estabelecer e consolidar as condições da sua própria dominação.
A via seguida por uma
formação social é sempre um produto da luta de classes. Esta opõe os que lutam
pelo triunfo da via socialista aos que lutam pelo triunfo da via capitalista.
Os primeiros são constituídos pelo proletariado e pelo conjunto das classes
populares a ele associadas; os segundos são constituídos pelo conjunto das
forças sociais burguesas, tenham elas ou não pertencido à antiga burguesia ou
estejam elas ou não «conscientes» do fato de que a linha política que defendem
conduz à perda do poder pelo proletariado. Nas
condições de estatização dos meios de produção, o local privilegiado de
constituição ou de reconstituição das forças sociais burguesas é o próprio
aparelho de Estado, as cúpulas do partido dirigente e as dos aparelhos
ideológicos e econômicos. Para que o proletariado não deixe de ter o papel
dirigente é necessário que, na prática, conserve sempre a iniciativa nas
frentes ideológicas e políticas. Para isso, precisa de continuar unido e
estreitamente associado ao conjunto das classes populares igualmente
interessadas no socialismo. Estas condições só podem ser preenchidas se o
proletariado dispuser de um aparelho ideológico e político próprio: um partido
marxista-leninista. E aqui surge uma segunda categoria de problemas.
2.
AS CARACTERÍSTICAS DO PARTIDO DIRIGENTE
O núcleo destes
problemas é o seguinte: para ajudar o proletariado e as classes populares a ele
associadas a avançarem na via socialista não basta que o partido
marxista-leninista, que guiou o proletariado na conquista do poder, se conserve
aparentemente «o mesmo»: é necessário que ele não mude realmente de caráter de
classe», portanto, é necessário que continue a ser um partido proletário; com
efeito, não pode existir ditadura do proletariado se o partido dirigente não é
o da classe operária.
O caráter proletário do
partido não se releva evidentemente da «auto-proclamação», da afirmação pelo
próprio partido da sua vontade de «construir o socialismo» ou da sua
«determinação de ser fiel ao marxismo-leninismo» ou a um «ideal
revolucionário». Este caráter só pode ser determinado por uma análise concreta
que revelará se as práticas políticas e ideológicas do partido dirigente são ou
não práticas proletárias.
A experiência histórica
permite, a partir de agora, caracterizar melhor a natureza de classe das
práticas políticas e ideológicas que um partido dirigente desenvolve. Esta
experiência, iluminada pela teoria marxista, leva-nos a concluir que o caráter
de classe da prática ideológica e política de um partido se manifesta na forma
das suas relações com as massas, nas relações internas do partido e nas
relações deste com o aparelho de Estado.
Se as relações
concretas entre o partido dirigente e as massas não são as que correspondem a
uma prática proletária e se, no próprio partido, as relações autoritárias
prevalecem sobre a discussão e a luta ideológica, é inevitável que as
concepções teóricas efetivas do partido se afastem cada vez mais do conteúdo
revolucionário do marxismo. Não pode haver concepções teóricas justas na
ausência de uma prática política correta. Por conseguinte, para que os
princípios marxistas-leninistas a que se refere um partido dirigente continuem
vivos e não «funcionem» como um dogma morto, desligados da vida, é necessário
que o partido e os seus membros não desenvolvam práticas autoritárias, que
submetam à crítica os que se comprometem em tais práticas e que façam
constantemente apelo à crítica das massas.
Em resumo, um partido
dirigente só pode ser um partido proletário se não pretender comandar as massas
e se, pelo contrário, for o instrumento das suas iniciativas. Isto só é possível
se ele se submeter efetivamente à crítica das massas, se não pretender
impor-lhes o que elas «devem» fazer, se partir daquilo que as massas estão
aptas a realizar e que auxilia o desenvolvimento de relações socialistas. Para
auxiliar este desenvolvimento, o partido deve saber reconhecer o que é que vai
no sentido deste; é muito particularmente para isto que a teoria
marxista-leninista deve servir.
O papel de um partido
proletário, portanto, é ajudar as massas a realizarem elas próprias aquilo que
é conforme aos seus interesses fundamentais. Em cada etapa de uma luta
ininterrupta pela transformação das relações sociais, o partido deve guiar as
massas a avançarem o mais longe possível na via das iniciativas que permitem
consolidar e desenvolver relações sociais proletárias, tendo em conta os
limites objetivos e subjetivos do momento e do lugar.
Um partido proletário
não pode pretender «agir em vez» das massas. Estas, com efeito, devem
transformar-se elas próprias ao mesmo tempo que transformam o mundo objetivo, e
só podem transformar-se através da sua própria experiência, das vitórias e dos
fracassos. Só assim podem as massas conquistar uma consciência, uma vontade,
uma capacidade coletiva, ou seja, a sua liberdade de classe.
Portanto, uma política
proletária — única garantia da conservação do poder pelo proletariado — deve
assegurar que as massas realizem elas próprias aquilo que objetivamente é do
seu interesse fazerem, isto na medida em que estejam subjetivamente prontas
para o fazer. Toda a violação da consciência e da vontade própria das massas
constitui um passo atrás. São passos atrás deste tipo que podem levar à perda
do poder pelo proletariado.
Por conseguinte, o
papel do partido consiste não só em definir objetivos justos, mas sem discernir
o que é que as massas estão aptas a fazer e levá-las para a frente sem jamais
recorrer à coerção mas lançando palavras de ordem e diretivas de que as massas
possam apoderar-se, elaborando uma tática e uma estratégia adequadas e ajudando
as massas a organizarem-se.
É
em função da exigência de tais relações entre o partido e as massas, é em
função de tais práticas que é essencial, como escreve Mao Tsé-tung, que «a
ditadura não se exerça no seio do povo» e que as massas populares «gozem da
liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de desfile, de
manifestação, de crença religiosa e de outras liberdades».(4)
Dizer que a ditadura
não se exerce no seio do povo é dizer também que ela não se exerce sobre a
pequena burguesia e, particularmente, sobre as camadas menos ricas do
campesinato médio. O proletariado e o seu partido devem conduzir a pequena
burguesia para a via do socialismo, que é a própria via do seu interesse real,
mas não devem exercer uma coerção sobre ela. Trata-se é de conduzir uma luta
ideológica que permita, segundo uma outra fórmula de Mao Tsé-tung, «arrastar as
ideias pequeno-burguesas na esteira das ideias proletárias».
Estas
são algumas das características das práticas políticas e ideológicas que
manifestam que um partido é, ao mesmo tempo, um partido dirigente e um partido
proletário, quer dizer, um partido que dirige as massas, mas que não comanda,
um partido que centraliza as iniciativas das massas para as ajudar a travar
batalhas políticas, unificadas. Para o exercício da
ditadura do proletariado é necessário um partido que proceda deste modo, pois é
graças à sua ajuda que o proletariado e as classes populares podem tornar-se
cada vez mais senhores das suas condições de existência, avançando no caminho
da sua liberdade coletiva, o que só é possível na base da sua unidade, mas de
uma unidade realmente querida e não imposta.
*Trecho do livro "Sociedades de transição: luta de classes e ideologia proletária".
Notas:
(1) Lenine, «Uma das
questões fundamentais da Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, p. 398.
(2) Cf. as notas de
Lenine sobre a Crítica do programa de Gotha, notas tomadas em Janeiro-Fevereiro
de 1917.
(3) Cf. Lenine, «O
Estado e a Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, op. cit., p. 467.
(4) «Da justa solução
das contradições no seio do povo», citado de acordo com Quatre essais
philosophiques, Pequim, 1966, p. 93.
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/bettelheim/index.htm
Edição: Que Fazer
Nenhum comentário:
Postar um comentário